05 junho 2009

A Carta

Meu pai,

Lembro bem do dia em que o senhor foi embora naquele barco sem dizer palavra, sem nem sequer me olhar nos olhos da gente. Por respeito, e por minha mãe, coitada, que ficou parada feito uma estátua de pau, eu também não disse nada. Meu irmão ainda falou, o senhor olhou para ele, bem nos olhos e eu fiquei ali, sem merecer um olhar. Por anos pensei o que foi que eu fiz.
Nunca entendi, ninguém entendeu.

O tempo foi passando, a gente foi crescendo, a mãe envelhecendo e aquele vazio no meio da casa. Aprendi a viver calada, também. Com tanta coisa que passava pela minha cabeça, tinha dia que parecia que aquela vida não existia, que eu não exitia. Quem não existia mais era o homem de palavra, que cuidava da gente, que trazia comida e dizia como as coisas tinham de ser. O senhor não pensou na gente, pai. Virou um morto sem ter morrido, sempre presente, sem estar lá. E eu que sempre achei que um dia ia voltar.

Eu não arrumava namorado, tinha medo que os homens fugissem de mim. Aí a mãe disse que se eu não resolvesse, depois não ia dar mais, que filho a gente tem logo, enquanto é forte, então eu casei. Moço bom, trabalhador, gosta de mim, mas eu não gosto dele. Respeito, mas não sinto amor, não sei gostar. Desde o primeiro dia, acordo antes que ele com medo de abrir os olhos e ele não estar lá. Mas ele sempre está; acorda logo depois, tomamos café, ele conversa e eu escuto.

Embarriguei, meu marido gostou de ter um menino homem. Quase morri para ele nascer. Quando passou o resguardo, a gente foi na beira do rio mostrar o menino para o senhor. Chamamos, eu levantei ele para o céu, que era para o rio poder ver, para o senhor poder ver, mas o senhor não viu. Nesse dia, pai, meu coração doeu, senti uma coisa como se uma vara fina tivesse me atravessado o peito e eu me atirei no rio com o menino no colo, o pobrezinho nem chorou.

A correnteza levava a gente, estava forte aquele dia e eu, sem largar o menino, fui parar na margem, minha roupa engastalhou nos galhos e meu marido salvou a gente. O menino tremia, boquinha roxa, quietinho. Nunca mais acreditei que um dia o senhor existiu.

Escrevo essa carta porque seu fantasma ainda me atormenta e se o senhor é de palavra, eu sou de escrita. Vou colocar essa carta no rio, sei que o senhor vai ler. Vou para longe, nunca mais eu volto, nunca mais olho para esse rio.

[Inspirado no conto A Terceira Margem, Guimarães Rosa]

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