13 outubro 2009

O Parto

- Quer ver a menina? Ela é perfeita.
- Quero dormir, tire ela daqui! Não quero ver ninguém... - respondeu Rilda com voz pastosa por causa do clorofórmio.

Alexandra nasceu na segunda-feira às 7:30 da manhã, sentada, azulada, enrolada no cordão umbilical, pesando pouco mais de um quilo e meio. Custou a chorar. Quando a enfermeira trouxe a criança no quarto, toda enrolada em flanelas, só se via um tufo de cabelo preto e encaracolado encimando o pacote cor de rosa. Amad a recebeu de braços abertos, cantarolou e dançou com a menina no colo. Depois, colocou-a na cama e a despiu. Encantado com aquela criaturinha arroxeada, examinou os dedinhos de pé, da mão e a vestiu novamente com habilidade. Sacudiu Rilda para que acordasse e visse a filha que acabara de nascer.

Foram para a maternidade no domingo à tarde. Rilda, nervosa, sentia-se gorda de tanta cerveja preta e canjica que fora forçada a tomar durante a gravidez; andava mal por causa da barriga e odiava arrastar os chinelos sem salto. Que pelo menos fosse um menino, para compensar tanto desconforto e os quinze anos sem filhos. Amad estava eufórico: iria ser pai, depois de quarenta anos bem vividos numa vida de jogador e moleque. Com cuidado, a acomodou no carro e a levou para a maternidade, onde o Instituto dos Bancários tinha convênio.

Muito reservada, Rilda estava contrariada em se expor para as enfermeiras nos preparativos do parto. A bolsa rompeu, ela fez força e o bebê, em vez de sair, entrou e virou. O médico, que auscultava os batimentos dela e da criança, percebeu que havia risco para ambas. Decidiu fazer uma episiotomia e tirar o bebê a fórceps altos.

As enfermeiras deixaram a que mãe descansasse até a hora de dar de mamar. Achando que o parto já fosse martírio suficiente, Rilda não fazia idéia do que seria amamentar: o peito sangrava e vertia leite a menina berrava, não conseguia, a boca era pequena e a fome desesperadora. A solução foi buscar leite de ama na Santa Casa. Naquele tempo havia um banco de leite e as amas ficavam numa sala onde havia uma placa “ Ordenha”. Estranho. Durante um ano Rilda cumpriu esse ritual indo, todos os dias, buscar as garrafinhas de leite.

Do hall da maternidade, Amad deu vários telefonemas para avisar às pessoas que Alexandra havia nascido. Depois foi aos jornais colocar o anúncio na sessão de nascimentos e registrar a filha no cartório. Íris veio ficar com a irmã e disfarçou a decepção; como os outros parentes, esperava um menino grande, forte, loiro e de olhos azuis. Tentou animar a irmã dizendo que o dia estava lindo, que a criança era saudável, melhor que fosse mulher, pois seria companheira. Vieram algumas visitas, mas Rilda as ignorou. No dia de ir para casa estava pálida, com medo de enfrentar as responsabilidades de esposa, de filha e, agora, de mãe.

Inexperiente, tentava parecer forte e segura. Quando cometia um erro, não dormia de remorso. Um dia, um acidente: ao sair da Santa Casa e entrar no carro derrubou a cesta com as mamadeiras. Tremia ao ver o leite da pobre ama escorrendo na calçada. Rilda se incomodava com as orelhas de abano da menina e achou que colocando esparadrapo poderia resolver o problema; depois de uns dias, na hora de tirar, a pele veio junto, mas as orelhas ficaram no lugar. As calças plásticas, novidade pós guerra, cozinhavam a pele fina; tudo era difícil, a menina não queria comer, quando comia, engasgava. Era um ser delicado, mas vingou.

Aos dois meses Alex estava fortinha, Rilda achou que podia respirar. Ledo engano! Ermenegildo, seu pai, tem uma morte sofrida depois de anos de invalidez e desatinos, seqüelas de um AVC. Olga, viúva e de luto, fica sabendo que tem câncer. O escritório de Amad pega fogo e o prejuízo foi enorme. Rilda arrasada, tentou trazer um pouco de luz ao ambiente sombrio e inventou um luto vestindo-se de branco. Achava que não faria bem para a criança olhar para as pessoas de preto à sua volta. A preocupação maior era tornar aquele ser mínimo, que dependia totalmente dela, uma pessoa educada, independente e responsável. A vida era muito dura, mas sua filha seria forte, mais forte do que ela se esforçava ser.

Alex andou cedo, falou cedo e logo tirou as fraldas. Alegrava a casa, entendia tudo que sua avó lhe falava em italiano, desafiava as ordens da mãe e brincava com o pai. Era uma menininha pequena no meio de adultos e com dois anos foi para o que seria hoje uma escolinha maternal. Foi bom para ela, que pode conviver com outras crianças e sair do ambiente pesado de casa.

Ao ver os seios de Olga mutilados em uma bandeja cirúrgica, Rilda desmaiou. Via a vida de sua mãe se esvair e o pouco alívio vinha das injeções verdes de morfina. Era preciso que alguém em casa aprendesse a aplicá-las e Amad se prontificou. Praticou no papo da galinha, fez uma sujeirada na cozinha, depois tentou numa laranja. Dina chorava de dor e ele teve de arriscar. Deu certo. Passou a fazer essa tarefa muito melhor do que o esperado. Ambos tinham senso de humor e se queriam bem.

No seu aniversário de quatro anos Alex foi mostrar o vestido novo para a avó que mal podia abrir os olhos. Dois ou três dias depois, a imagem do corpo sendo velado em cima da mesa na sala de jantar lhe assombrou os sonhos durante anos.Rilda sofreu as perdas, mas fez questão de não demonstrar. Amad sentiu a responsabilidade de ser pai, não queria que sua menina crescesse vendo os agiotas na porta a cobrar dívidas de jogo. Dedicou-se ao seu trabalho no banco, deixou de jogar e abriu uma camisaria como segunda fonte de renda. Rilda o apoiava em tudo, eram parceiros, amantes e ...pais. Bons pais.

Nenhum comentário: