10 novembro 2009

De Dentro do Armário

Aqui no escuro ninguém me acha, quem sabe eu me acho.

A fresta de luz deve ter uns três milímetros, a prateleira é resistente, as roupas têm meu cheiro. Quero ver se vou entender o que eu escrevi depois, se alguém vai entender o que eu escrevi depois. Vou escrever bem grande, em letra de forma, gastar o caderno todo.

Estou esfarrapada, dolorida. De manhã não quero sair da cama. Tem muita gente no mundo e todas falam no celular. Búfalos andam de metrô, veículos robustos empoderam idiotas, enxames de vespas escoam pelas ruas. As línguas se bifurcam, espirram perdigotos de veneno e meu antídoto está vencido. As calçadas não são para seres humanos, são para cães e suas babás. Os reflexos me perseguem, tenho ódio daquela mulher. Quando não consigo evitar, me aparece um espectro caricato do que eu não quero ser.

Nesse cômodo, não vejo: sinto. Eu gostava de menstruar. O toque do jeans, que não me serve há anos, me excita, as possibilidades de fazer sexo são mínimas. Liberdade é uma calça velha azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser. Só não usa quem não quer... Eu quero, mas não posso; não me serve mais. Nem meus filhos usam mais jeans, são agora pessoas de terno.

Sou o coringão, o jockey do baralho. Valho o dobro na contagem, me encaixo em todos as jogadas mas, sozinho, não passo de um bobo da corte.

Um comentário:

Paulo Fodra disse...

Gostei muito desse texto, San! Adorei as imagens, a profundidade da consciência!

Beijos