15 dezembro 2013

Não sei mais usar xampú

Juro, não sei.

Xampú, ou shampoo? Também não sei.

Hidratante, revitalizante, fortificante, tonalizante, clareador, recondicionador, restaurador, reconstrutor, purificador. Controle de volume, controle de frizz, controle de queda, proteção de fios, proteção solar, contra caspa, uso constante...

Devo preferir cremoso, gel, perolado ou com microesferas?De frutas, de flores, de ervas, de oleos essenciais...

Com queratina, colágeno, vitamina E ou óleo de argan? Com sal e sem sal.

Preciso escolher também o PH: 5, 5.6, 6, 6.5 ou 7.

E claro, preciso ter absoluta certeza como são os meus cabelos...

"O Brasil reúne os sete tipos de cabelo encontrados no mundo. Catalogados pela gigante francesa L´Oréal, eles são distribuídos da seguinte forma: lisos, levemente ondulados, ondulados, levemente encaracolados, encaracolados, afro."

secos, oleosos, normais, secos só nas pontas
curtos, longos, semi-longos
tingidos, alisados, descoloridos, danificados, grisalhos...

e pensar que, não faz muito tempo, se lavava a cabeça com sabão de coco...

12 dezembro 2013

Carnes

Cobrador - Já cumeu carni di caval?        
Motorista - Carni di caval? Não, ué. Cê já?
Cobrador -Cumi quibi.
Motorista - Qui qui é iss?
Cobrador - É coisa de árbi.
Motorista - Ah... Cumi carni di gatu.
Cobrador - Tamém já. Gatu já cumi.
Motorista - Cumé carni de caval?
Cobrador -Cê ferve e sai uma iscuma. É o suór du bichu.
Motorista - Di gatu prece cu frangu.
Cobrador - Como sempre, a patroa faiz.
Motorista - Num gosto não.
Cobrador - E coxinha de carni di genti?
Motorista - Quê?
Cobrador - Carni di genti, coxinha de genti.
Motorista - É memo?
Cobrador - É, uai.
Motorista - Carni de genti...
Cobrador - Lá em Pernambuco tem um povo qui comi.

05 dezembro 2013

Metrô - entre Paraíso e Vila Madalena

Ver a mulherada enrolar e desenrolar o cabelo compulsivamente e lixar as unhas eu já até me acostumei. Trocar de sapato, acho estranho, mas prático. Faria se fosse preciso. Pegação de pé, no metrô lotado também não estranho mais, afinal, os hormônios andam em alta. 

Recentemente descobri o que eu temia... a moda é terminar de se arrumar dentro do trem, durante a viagem. Imaginei as meninas pensando... vou pra balada, acordo no último minuto e acabo de me arrumar no metrô, tipo assim, normal.

Hoje eu vi duas, uma do meu lado e a outra na minha frente: várias estações só passando rímel, depois lápis (fiquei com medo que furassem o olho) blush, pó, batom, sombra, creminho na mão...Uma delas tirou uma pinça e acertou a sobrancelha...



Fiquei pensando em levar uma pequena bacia de plástico, uma garrafa térmica com água quente, toalha, alicate, aquele negócio de ralar o calcanhar e fazer os pés pegando a linha azul até o Tucuruvi.

04 dezembro 2013

Quer ver a menina?

Ela é perfeita.

- Quero dormir, tire ela daqui! Não quero ver ninguém... - respondeu a mãe com voz pastosa por causa do clorofórmio.

Nasceu na segunda-feira às 7:30 da manhã pesando pouco mais de um quilo e meio. Custou a chorar. 

Quando a enfermeira trouxe a criança no quarto, toda enrolada em flanelas, só se via um tufo de cabelo preto. O pai a recebeu de braços abertos, cantarolou e dançou com a menina no colo. Depois, colocou-a na cama e a despiu. Encantado com aquela criaturinha arroxeada, examinou os dedinhos de pé, da mão e a vestiu novamente com habilidade. Sacudiu a mãe para que visse a criança.

Foram para a maternidade no domingo à tarde. A mãe, nervosa, sentia-se gorda de tanta cerveja preta e canjica; andava mal por causa da barriga e odiava arrastar os chinelos sem salto. Que pelo menos fosse um menino, para compensar tanto desconforto e os quinze anos sem filhos. O pai estava eufórico, depois de 40 anos bem vividos. Com cuidado, a acomodou no carro e a levou para a maternidade do Instituto dos Bancários.

Muito reservada, a mãe estava contrariada em se expor para as enfermeiras nos preparativos do parto. A bolsa rompeu, ela fez força e o bebê entrou e virou. O médico, que auscultava os batimentos dela e da criança, percebeu que havia risco para ambas. Decidiu tirar o bebê a fórceps altos.

Achando que o parto já fosse martírio suficiente, a mãe não fazia ideia do que seria amamentar: o peito sangrava e vertia leite a menina berrava, a boca era pequena e a fome desesperadora. A solução foi buscar leite de ama. Durante um ano o casal cumpriu esse ritual indo, todos os dias, buscar as garrafinhas de leite.

Do hall da maternidade, o pai deu vários telefonemas. Depois foi registrara filha no cartório e aos jornais colocar um anúncio no setor de nascimentos. A irmã da mãe veio ajudar e disfarçou a decepção; como os outros parentes, esperava um menino grande, forte, loiro e de olhos azuis. Tentou animar a irmã dizendo que o dia estava lindo, que a criança era saudável, melhor que fosse mulher, pois seria companheira. No dia de ir para casa a mãe estava pálida, com medo de enfrentar a responsabilidade. Além do marido e dos pais doentes, agora tinha um bebê prematuro para cuidar.

Inexperiente, tentava parecer forte e segura. Quando cometia um erro, fumava um cigarro atrás do outro, não dormia de remorso. Um dia, um acidente: ao sair da Santa Casa e entrar no carro derrubou a cesta com as mamadeiras. Tremia ao ver o leite da pobre ama escorrendo na calçada. As orelhas de abano da menina a incomodavam. Achou que colocando esparadrapo poderia resolver; depois de uns dias, na hora de tirar, a pele veio junto, mas as orelhas ficaram no lugar. As calças plásticas, novidade pós-guerra, cozinhavam a pele fina; tudo difícil, a menina não queria comer, quando comia, engasgava. Era um ser delicado, mas vingou.

A preocupação maior era tornar aquele ser mínimo, que dependia totalmente dela, uma pessoa educada, independente e responsável. A vida era muito dura, mas sua filha seria forte, mais forte do que ela se esforçava ser.

A menina andou cedo, falou cedo e logo tirou as fraldas. Alegrava a casa, entendia tudo que sua avó lhe falava em italiano, desafiava as ordens da mãe e esperava o pai no fim do dia. Era uma menininha pequena no meio de adultos e com dois anos foi para o que seria hoje uma escolinha maternal, conviver com outras crianças e sair do ambiente pesado de casa.


O pai sentiu a responsabilidade, não queria que sua menina crescesse vendo os agiotas na porta a cobrar dívidas de jogo. Dedicou-se ao seu trabalho no banco, deixou de jogar e abriu uma camisaria como segunda fonte de renda. A mãe o apoiava em tudo, eram parceiros, amantes e ...pais. Bons pais.

11 outubro 2013

Fantasia

Final dos anos 70, a novela Dancin'Days lançando a moda de sandálias de plataforma com meias de lurex, Sonia Braga no auge da forma, e a menina de cinco anos sai do maternal da escolinha de bairro e vai para o jardim da infância de uma tradicional escola. Tudo dando certo, família feliz. Aí, vem um recadinho que no dia das crianças todas poderão ir fantasiadas e levar um brinquedo. A menina diz à mãe que não se preocupe - ela já sabe que fantasia vai usar.

Correria, vamos que já está na hora e lá vem a pimpolha toda pronta. A mãe acha graça, mas não questiona.

Na sala de aula, palhacinhos, bailarinas, coelhinhos, princesas e  fadinhas param de brincar quando entra a menina de shortinho preto, blusa e tamancos dourados, brincos de argola, o cabelo preso no alto da cabeça por uma echarpe cheia de brilho. Sem falar no batom vermelhíssimo.

- Muito bem...- diz a professora estranhando um pouco...- do que é a sua fantasia?
- De mãe! Estou fantasiada de mãe!

De fato, só o shortinho era dela...

Acho que foi por essa época que surgiu o regionalismo " perua" para designar pejorativamente a mulher que se dá ares de elegante, mas que se veste espalhafatosamente...

18 setembro 2013

O que acontece?

- Meu trabalho? Ah, tipo assim, na verdade eu até gosto, sabe? Mas, o que acontece?  É meio nada a ver o que eu faço lá. Todo dia eu chego, tomo café, falo com o pessoal, super legal todo mundo, super gente boa, tem uma menina, ela também estudou onde eu estudei e a gente tipo meio que se conhecia. Legal.  Na verdade, estou gostando, assim, do pessoal... Não é longe, tem lugar legal pra gente almoçar, tipo vai todo mundo junto. Entende? Tipo assim, tá legal.
- Mas você está lá faz pouco tempo, não é?
- É. Na verdade, sim. Estou. Mas, o quê que acontece? Tipo, todo dia, a supervisora, sabe, ela está lá! Ela, meu, chega assim super cedo sabe? E eu, tipo, fico assim, meio me sentindo culpada, sabe. Porquê? O que quê acontece? Eu faço pós, está puxado, porque eu, tipo, quero super ganhar mais e eu sei que a pós vai me ajudar. A minha chefe, ela disse, que hoje em dia quem não tem pós, não tem chance. Então, eu pensei, sei lá, fico lá até terminar a pós, tipo fico lá, na boa. Na verdade, não ganho muito, mas moro com meus pais, dá para pagar meu celular, tipo balada, comprar umas coisas...


10 setembro 2013

Como gastar os minutos do pré-pago

Oi. Oi.
Oi?
Tô.
No metrô. Oi? Metrô, metrô!
Tô ino. Quê? Tô ino lá.
Fazê us izmimedic. Que o médi falô pra fazê. Oi?
Daquels pobrema lá queu ten. Tô cus izame aqui.
Prasdasé. É. Tá ovino? Prasdasé.
Fala logo. Vô. Vô. Oi?
Oi.
Aqui num pega direito.Tá lotado sim, tô na porta.
Quê? Falei.
Falei cuscara lá, eisvão vê.
Já tá na hora de descê, depoitiligo.
Tá, tá, tábão intão.
Tem, ainda tem crédi, tem.
Tchau.

08 agosto 2013

Facebook

Você atualizou sua foto de perfil e eu fui avisada. Não queria. Mas vi você tão de perto, com tantos detalhes, que as lágrimas ficaram enchendo a parte de traz do meu globo ocular enquanto eu sentia um lento soco no estômago. Seus olhos cor de. Cor de quê? Sei lá. Sei que estavam olhando para mim e eu até ajeitei o cabelo, passei os dedos na sobrancelha e cliquei no canto da tela para sair da sua mira. O soco foi igual àquele que eu levei quando te vi pela primeira vez e perdi o rumo, tropecei e ri feito boba.

Por que você atualizou a sua foto de perfil? Para mostrar que está bem? Eu também estou. O que me aborrece é uma coisa que não tem nome, um desejo de te ligar e dizer venha aqui agora, eu quero, eu preciso ou vá para o inferno, me deixa em paz. Ver você assim tão de perto me fez beijar a tela fria bem em cima da sua boca, passar a mão no seu cabelo e me sentir ridícula.

Um enternecimento frouxo, um luto brando, um buraco. Vou ligar o skype.

01 agosto 2013

Enroladas

Todas elas têm cabelos lisos às custas de progressivas ( ou não), preferem reflexos, luzes californianas, americanas, seja lá qual for o nome, e todas ficam se olhando no reflexo da janela do ônibus ou do metrô; as que têm carro, no espelhinho retrovisor. Os movimentos são os mesmos: puxar o cabelo por cima do ombro, enrolar, enrolar, enrolar, escovar as pontas com a mão, em movimentos rápidos. Verificar se estão duplas, eliminar os fios que se desprendem, cheirar, jogar o cabelo para trás. Dois minutos depois, iniciam o processo. Parece que não percebem.

Na aula, na reunião de trabalho, na conversa informal, elas enrolam, enrolam, enrolam as madeixas, dessa vez na altura da nuca, aí fazem uma espécie de coque e prendem com alguma coisa que pode ser um lápis, uma piranha, uma elástico frouxo, não importa. O que importa é que seja algo que não prenda o cabelo, que vá escorregando para que ela possa terminar de tirar e começar o processo de enrolar de novo. Se você estiver atrás de uma delas corre o risco de levar uma cabelada no rosto ou, no mínimo, conseguir alguns fios de cabelo grudados na sua roupa impecável.

Na balada, na paquera, na fila do cinema, o processo mais comum é jogar a juba de um lado para o outro, geralmente usando a mão e o antebraço,  mantendo a postura totalmente inclinada para favorecer o balanço dos fios.

Eu sempre soube que era falta de educação pentear o cabelo em lugares públicos, mas os costumes mudam e mexer no cabelo compulsivamente parece que é a tendência. Vou tentar me acostumar

17 julho 2013

Flip 2013

Uns dias de chuva em Paraty, depois a Flip. Não tão cheia quanto o ano passado, não tão glamourosa  mas com muita gente boa que sabe o que diz. Tive sorte. depois de tantas Flips tive a impressão que não se sabe mais quem convidar. Alguns estrelinhas não compareceram, jovens moçoilas que fazem poesia foram enaltecidas, a mesma cidade encantadora de sempre, as mesmas pessoas não tão encantadoras de sempre, público que gosta de literatura em geral, Off Flip alternativa crescendo, Globo comprando a cidade. Sesc fazendo feio com um gerador barulhento estragando a paisagem, além  de música altíssima, nada a ver com o clima da festa.

Comprei ingressos na quarta de manhã, tudo na tenda do telão - que por sinal agora tem uma qualidade assustadora. Está maior e parece que você entra dentro da tela.- Gostei de tudo que vi e ouvi, me senti meio que fazendo parte de tudo. 

A casa onde fico é linda, acolhedora, inspiradora. Arrisquei escrever um pouco aproveitando o cenário de filme. A Vivo ficou fora do ar, fiquei sem telefone. A casa não tem internet e, na cidade, nem sempre é fácil achar um wireless. Quando achei, me pediram para sair, afinal precisavam atender outros clientes e fazer dinheiro. Olha que fiquei o tempo em que estava jantando e pagando bem carinho, por sinal. Mas a internet não fez tanta falta, dei um tempo. Achei uma lanhouse fora do centro histórico, dois reais a hora e os cachorros da rua fazendo presença no ar condicionado...porta aberta, é claro.

Doces, salgados, sopinhas e provinhas de cachaça. Saladão e peixinho grelhado. Que mais eu preciso, meu deus? Segue um resuminho.



Quarta, dia 3, Show de abertura com Gilberto Gil. O vi de pertinho na pousada tirando fotos para a imprensa. Não foi sensacional, foi tranquilo, muita gente dentro e fora, beira mar ouvindo Gil.


Quinta, dia 4,  comecei o dia na Casa da Folha 2, tomando capuccino, lendo jornal e ouvindo primeiro Rui Castro falando que o "Rio voltou para ficar, mais uma vez, por toda vida." Muitos cariocas adorando ouvi-lo falar da Cidade Maravilhosa. Esse dia eu quase acreditei que o Rio de Janeiro é o centro do mundo. Tudo lá é melhor, maior, o primeiro, o mais importante. Ah... e quem, como eu, diz Rio de Janeiro é quem não tem intimidade... me senti mais paulista do que nunca. Com papo simpático de botequim, alma carioca, Rui Castro fez uma retrospectiva bem bacana. Muito bom ouvi-lo contar seus casos. Falou, claro, das biografias, de como coleciona informações. Caso interessante quando fazia a biografia de Carmem Miranda, uma amiga da cantora o procurou dizendo que queria falar sobre seu casamento no Rio. Eles se encontraram e a senhora descreveu nos mínimos detalhes o casamento, as roupas, a festa, as flores, tudo enfim. O que acontece é que Carmem Miranda não se casou no Rio. Nem se casou, na verdade e o que a senhora lembrava era do casamento da Aurora, irmã da famosa.


Na Casa da Folha 1 cheguei cedo para ver e ouvir Laerte. Achei um lugar bacana, com banco de encosto, levei uns 5 ou 6 pisões, inclusive de uma senhora que pisou em um pé e apoiou a bengala no outro. Quando eu gritei de dor ela disse: " E olha que eu nem coloquei meu peso todo..." Então. Laerte é fofo, tem estilo, usa acessórios e fala macio, quase dá sono. Tranquilo. Aparentemente tranquilo. Achei que era alto e magro, mas não. Atarracado, de saia, echarpe e andar de homem. Simpático, cumprimenta as pessoas. Seu humor anda meio triste, diz ele que está mudando. Todo mundo muda, ainda bem.

Voltei para a Casa da Folha 2 para ouvir Comida de Rua X Comida de de Chef, com Alexandra Forbes e André Barcinski. Ele, simpaticíssimo, procura lugarezinhos inusitados com comidas diferentes e bem preparadas. Escreveu um livro sobre culinária ogra, interessante. Ela, antipaticíssima, insuportável, eu diria, começou dizendo que tinha acabado de chegar da Europa, há 10 minutos precisamente, fez cara de nojo e contou o quanto a vida dela é chata viajando o mundo inteiro visitando os melhores restaurantes e provando delícias dos mais famosos chefes. Tão, chata, mas tão chata que eu até fiquei para ver se ela conseguia ser mais chata ainda. Me enganei, depois ela foi melhorando um pouco. Quase conversei com ela. Ouvi dizer que ela era tipo gostosona, bonitona. Pode ser. A cara dela é seca, parece santa de pau. Logo depois fui pesquisar sobre ela, parece que é importante.

Ao lado da Casa da Folha 2, fica a Casa do Instituto Moreira Salles, a programação deles também estava muito boa. O local é chique, as pessoas são chiques, fiquei para ver e ouvir Milton Hatoum. Simples, ele. Fofo. Cabelinho parecido com o meu: armado. Deve ser característica de gente das arábias... Não fiquei até o fim. Noite linda e gelada.


Para encerrar o dia, na tenda dos autores, aquela fechada, com anfiteatro, ar condicionado e todo conforto, aconteceu uma mesa extra " Narrar a Rua" com Marcus Vinicius Faustini, Pablo Capilé, Fabiano Calixto e Juan Arias. Só deu Capilé e Arias. Capilé,  o mais jovem, com voz de periferia e linguagem popular. O mais velho, Arias, espanhol que escolheu o Brasil para passar o fim de seus dias. Ambos geniais. Dá uma esperança ouvir gente assim, impressão de que o mundo ainda tem jeito.






Essa e mais outras duas mesas foram formadas para colocar em pauta os protestos que vêm acontecendo no Brasil todo ultimamente, que foram assistidos e analisados em tempo real por milhares de pessoas via blogs, sites, redes sociais, jornais e televisão. Os primeiros meios de comunicação, que acabei de citar,  apresentaram o que quiseram sem nenhum filtro. Os convidados são intelectuais que acompanharam de perto os movimentos e se reuniram para discutir as diferentes estratégias para narrar a rua. Agora é hora de reclamar e exigir direito e direitos.


Não vou conseguir reproduzir o que eles disseram, mas saí de lá com uma esperança boa, uma fé no ser humano e no Brasil e contente por ter a mente aberta e conseguir entender o que a internet tem feito com a História. As coisas estão mudando e tenho certeza que é para melhor. Mesmo que louca e desordenadamente, as coisas acontecem e vamos conseguir algo de bom com isso.

Sexta, dia 5, logo às 10 horas fui saber um pouco da Ficha Política de Graciliano Ramos, o homenageado da feira. Randal Johnson, professor na Califórnia, brasilianista, Dênis de Moraes, biógrafo do autor,  e o sociólogo Sergio Miceli falaram do autor que, sim teve participação política porque literatura é política. Fiquei sabendo um pouco mais do Graça, como dizem. Bom assim, você tem uma ideia, um apanhado geral. Logo cedo. Gostei.


Em seguida, "O Prazer do Texto" com Lila Azam Zanganeh e o filho do João Bosco, Francisco Bosco. Dois jovens bonitos, inteligentes deixaram a gente flutuando. Ela, filha de iranianos, nascida em Paris, aos 20 anos foi dar aulas de cinema e literatura em Harvard. Geninha. Fala 6 idiomas e aprendeu português para falar na Flip. Falou direitinho e até cantou trem das Onze, com pascarigundum e tudo. O Bosco estava dizendo que a música supera a palavra, por isso as vezes se usa onomatopéia, tipo teteretetete...obala, aê, etc.


Então ela, lindinha, cantou a música que diz que é a que mais gosta em português. Estudiosa de Nabocov, ensaísta emergente e premiada, mistura ensaio biografia e ficção. Quero ler seu livro o Encantador. Bosco também se dedica a escrever ensaios.




O dia estava cheio. Depois de comer peixinho e salada fui para o Clube dos Autores, que estava numa casa muito gostosa na Rua Santa Rita, ouvir Marcelo Antinori. Economista, trabalhou na secretaria da Fazenda, fez a transição da VASP estatal para empresa privada, trabalhou no Banco Mundial e participou de CPIs bravas. Agora é só escritor. ( Como se fosse pouco...) Em 1 ano escreveu 4 livros e relançou na FLIP seu Labirinto de Mariana em e-book, pela Amazon. Articulado, interessante, contou um pouco do seu processo criativo, de como surgiu a ideia do livro, ali mesmo em Paraty, algumas décadas antes. Não deu para fazer tudo, no mesmo horário tinha uma mesa " A Vida Moderna em Kafka e Baudelaire". O bate papo com Antinori estava mais interessante.


Fim de tarde maravilhoso, o beira rio e o beira mar num visual estonteante e fui ver uma mesa que simplesmente adorei "Ficção e Confissão" com Tobias Wolff e o mexicano Juan Pablo Villalobos, que veio no lugar do norueguês Karl Ove Kanusgârd. Basicamente falaram do velho tema o que é memória, o que é ficção e que todo escritor é um bom mentiroso. Tobias e Juan Pablo têm memórias e confissões pessoais como elementos muito fortes em suas obras e falaram da importância de encontrar a voz literária para cada história que contam. Genial. Diz ele, Wolff,  que fomos criados sabendo que mentira é pecado. Mas o escritor, ao escrever ficção está mentindo, inventando, o que não deixa de ser a busca da verdade. Quando ele era estudante, não era um bom estudante, tirava notas péssimas, mas, na escola que frequentava o boletim era preenchido a lápis e então ele alterava as notas. Quando precisou mudar de escola, ele mesmo fez suas cartas de apresentação  como um bom estudante, mas fez tão bem que foi aprovado. Foi aí que entendeu  que poderia fazer c com que as pessoas acreditassem no que ele escreve.

Mencionou um conto que escreveu sobre um crítico literário que estava numa fila de banco quando entram ladões para fazer um assalto gritando frases feitas, que o crítico detestava. Em vez de se apavorar, o crítico ria dos chavões e acabou por irritar um dos ladrões. Quando esse disse mais uma frase feita do tipo "cale a boca senão eu atiro', o crítico deu uma gargalhada e, claro, levou um tiro. Então, o autor descreve com detalhes o percurso da bala, o que o crítico sentia a cada milésimo de segundo e todas as memórias que lhe vieram à tona antes de morrer. Achei esse relato bastante inspirador.

O mexicano Juan Pablo tem bastante senso de humor. 

"Quando decidi escrever 'Festa no Covil', que são as memórias de um filho de um traficante mexicano, a escolha da voz infantil na narrativa foi fundamental para que o livro não tivesse uma posição moralista e relação à violência, às drogas e aos dramas mexicanos", disse Villalobos.
Usou sua experiência de vida e fez um personagem muito parecido com ele mesmo e com seu irmão quando eram pequenos e viviam numa cidadezinha pequena onde nada acontecia. Eles inventavam histórias para afastar o tédio.

Depois de ouvir e ver tanta coisa boa, chegou o momento que mais esperava " Lendo Pessoa à Beira-mar, com Maria Betânia (67) e Clarice Bernardinelli (96). Show. Emocionante. D. Cleo roubou o show de Betânia que respeitosamente a aplaudia e admirava. Confessaram publicamente quererem gravar um cd com os poemas de Fernando Pessoa. 




Fiquei bestificada com a energia de D. Cleo, com a clareza e a interpretação dos poemas. Marcelo Antinori, que assistia ao meu lado disse " essa senhora é o Fernando Pessoa". O pior é que é verdade. E eu, pobre de mim que me emociono com a beleza de qualquer coisa, derramei umas lagriminhas disfarçadas. Adorei mil vezes. Achei a Betânia a feia mais bonita que eu já vi. Ela parece uma aparição, uma entidade. Da platéia, além das perguntas, vieram declarações de amor, às que ela respondeu com toda elegância e um pouco de vaidade, que lhe cai muito bem. 
O poema que mais gostei foi o que se segue, cabendo à D. Cleo todos os "ridículos" muito bem colocados. Betânia era só sorrisos.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, 21-10-1935


Mas o dia ainda não tinha acabado. Um frio danado, voltei à casa para colocar uma roupa por cima da outra e voltar à tenda do telão. Por sinal enorme e com uma qualidade  e definição de imagem espetacular. Para comemorar os 100 anos de nascimento de Vinicius de Moraes, Vinícius 100, palavra e música, um show aula sobre as músicas e letras do poeta com José Miguel Wisnick. Não fiquei até o fim, Estava muito frio. Fui tomar uma sopinha e acabei provando uma cachaça, essa sim espantou o frio e eu dormi feito um anjo.

Sábado, dia 6, Casa da Folha 2, capuccino, jornal, banquinho duro, beeemmmm desconfortável e Zeca Camargo, lançando seu e-book "Nu". Ao fazer 50 anos decidiu se isolar por uns tempos, foi para a Islândia, onde tem pouco gente ( na verdade, na Islândia não tem nem árvore.), e ficou pensando na vida, na idade, no corpo, na memória . Acabou escrevendo um livro confessional. Articulado e animadíssimo, deu atenção a todo mundo. quando citou que os livros que usou de referência para escrever seu livro foram dois livros não muito conhecidos que eu lé e adorei, fiquei bem contente. Afinal, não sou tão sem noção assim. os Livros são de Nora Ephron, roteirista do clássico Harry and Sally, e David Sedaris, colunista com um humor negro inconfundível.

Almoço com a família e a longa viagem de ônibus de volta. Juro que eu levo uma mala ainda menor da próxima vez. O laptop, não levo mais. Trambolho.

10 julho 2013

Descendo a serra

Na janela, a natureza passa depressa como um rolo disparado...mato, rocha, planta, barranco, mato, pedra, terra, planta. De repente, a lua. Enorme e amarela, de um brilho fosco e perolado. Lua, mato, barranco, pedra, terra, planta. Lua amarela derramando pérola líquida no mar. Céu de cetim cinza chumbo, montanha de veludo preto, pedrinhas de cristal em forma de trio, de cruzeiro, do que eu quiser. O rolo de natureza me hipnotiza, lembranças tonteiam, adormeço.

Acordo com a lua alta, agora branca quase azul, com seu véu de noiva turbulento se arrastando e branqueando o mar. Paraty. Mochila pesada, as pedras das ruas, a casa colonial, o jardim. Tomo banho de lua e respiro liberdade. Passeio na cidade, ouço música, tomo vinho, passeio no beira rio. Não quero dormir, não quero falar, não quero nem me mexer. Quero apenas ser.

25 junho 2013

Quartinho dos Fundos

A casa onde cresci era um sobrado geminado, pequeno e perfeito. Minha mãe sabia como ninguém cuidar daquela casinha branca. Depois de um quintal muito pequeno, havia quartinho um de despejo. Piso hidráulico com mosaicos, predominando tons de amarelo e marrom, uma espécie de guarda-roupa vagabundo de pinho pintado de cinza, onde coisas velhas se acumulavam. " Um dia a gente pode precisar..." Dentro do quarto havia um ralo, uma coisa estranha, com tampa de cimento, uma alça de ferro enferrujada para puxar. Volta e meia era preciso ser limpo com creolina, eu ficava curiosa para ver o que ia sair de lá...pedaços de vassoura de piaçaba, cabelo, fios de linha, poeira acumulada, enfim, o lixo do quintal. Um nojo hoje;  interessante naquele tempo.

Um dia, pedi à minha mãe o quartinho só para mim - seria meu escritório, com a velha máquina de escrever e meu  material de artesanato. Ela concordou. Passou cal nas paredes, no armário, na mesa e na estante. Os móveis, que já eram horríveis, continuavam horríveis e pintados de branco. Comprou tecido, fez cortinas azuis, de um paninho vagabundo, mas vistoso, ajeitou tudo para mim. Que eu cuidasse e usasse bem, afinal, era uma parte da casa. Lá dentro, o nirvana, o céu  e eu não saída de lá. No meu pequeno refúgio, procurava expressar quem eu achava que era em forma arte. Via um futuro promissor e cheio de afeto, como estava acostumada.

Mudamos de lá, mudamos de vida, de cidade, de país e a casinha ficou. Às vezes eu sonhava com ela, lembrava de pequenos detalhes, como os cantos do rodapé, as vigas de madeira no teto, " estilo mexicano", dizia minha mãe. Via as árvores antigas da rua serem arrancadas, as raízes expostas, olhava de perto aqueles nós e queria protegê-los. Sentia o cheiro da terra úmida e cavava buracos procurando minhocas.

Quando voltamos fui até lá: o sobradinho parecia menor ainda. Tudo estava intacto, cheio de poeira. Meu paraíso particular  tinha sobrevivido ao tempo, mas a porta estava empenada e podre. Abri tudo, abri a janela, as cortinas rasgaram. As latas de tinta e os pincéis secos, pilhas de jornal amarelado, trapos encardidos e secos, e o armário lá. Em princípio, tive medo de abrir. O que teria lá dentro? Nada. Lixo. Madeiras velhas, tralha de cozinha, inutilidades. Ninguém precisou delas. Fiz uma fogueira no meio do quintal, fui jogando aquilo tudo, via o fogo queimando aquele monte de coisas que não faziam mais o menor sentido.

17 junho 2013

Escritoras e o Erotismo


Em um tempo em que os homens achavam que “nada se poderia esperar intelectualmente das mulheres”, Virginia Wolf já questionava a posição da mulher na sociedade e na literatura. No livro-ensaio, Um Quarto Só Para Si (1929), onde encontra-se a citação " Uma mulher deve ter dinheiro e um quarto próprio se ela quiser escrever ficção. ", em descrições detalhadas e bastante cinematográficas, ela aponta as diferenças entre universidades  dirigidas ao público masculino, e as poucas universidades que permitiam a presença feminina, por exemplo. Nas primeiras, o luxo sustentado pelos cofres do rei e a abundância de laboratórios, equipamentos, bibliotecas; nas outras, ambiente sóbrio, quase rural, onde imperava apenas a sede de conhecimento. Um pouco antes, homens considerados importantes ainda diriam “elas são sustentadas pelos homens e servem a eles”. A questão não era só servi-los, mas não poder ser independente financeiramente. Que mulher teria tempo de se dedicar à literatura tendo 13 filhos para criar?

Se pensarmos o quanto a posição da mulher mudou depois da I e da II Guerra, da Revolução Industrial, do advento da pílula anticoncepcional decorrente da revolução sexual dos anos 60, vamos perceber que a virada foi rápida e radical, depois de séculos de mesmice.

Final da década de 50, a psicóloga Virginia Johnson se associa ao médico William Masters no estudo do ato sexual humano e do  tratamento das disfunções sexuais. Muitos livros depois, com relatos sobre conhecimento científico da sexualidade humana, tratamento de problemas sexuais, a ausência de orgasmo feminino, etc., muitas portas se abriram, houve melhoria da vida sexual de muita gente em todo o mundo. As mulheres ficaram sabendo que era possível ter prazer e passaram a reivindicar seus orgasmos.

A partir dos romances eróticos de Anaïs Nin, influenciados pela obra de James Joyce e a psicanálise,  à D. H. Lawrence, que apesar de ser do sexo masculino inovou com  “O Amante de Lady Chatterley” ao revelar os desejos sexuais de uma burguesa e seu amante, a literatura sobre erotismo já começava a dar tímidos passos.

No Brasil, a primeira mulher a publicar poesias eróticas, Olga Savary, hoje com 77 anos diz que pensa muito em sexo. Atrás do sorriso enigmático, guarda retratos e poemas de admiradores famosos e histórias picantes, profundas e divertidas. Contemporânea de Olga, Cassandra Rios foi uma das autoras mais vendidas, e perseguidas, nos anos 60 - a censura não tolerava o forte conteúdo erótico de sua obra, assuntos como homossexualidade feminina, relações entre sexo, religião, política. Não menos transgressora, Adelaide Carraro, outra brasileira que deixou obra extensa, sendo o título mais conhecido “Eu e o Governador”, sobre suposto romance com Jânio Quadros, quando este era governador de São Paulo.

Hoje, poucas décadas depois, as mulheres já caminham altivas, com suas conquistas. Sabem que ainda falta, mas querem arriscar. E. L. James, a dona de casa britânica que descreve sem reservas suas fantasias sexuais, sacudiu o imaginário de outras milhares de donas de casa com seus  “ Cinquenta Tons de Cinza”. Com ela, as americanas Sylvia Day e Eve Berlin, a francesa Catherine Millet e italiana Melissa Panarello, entre outras, também aderiram à moda.

Se E. L. James escreve mal, se o conteúdo é questionável e outros tantos senões, o fato é que a trilogia está aí, nas mãos da mulheres no metrô, nas salas de espera e em toda parte. Sinal de que a luta de Virginia Wolf e das que vieram depois não foi em vão. Vamos ficar atentos agora às novas vozes femininas, brasileiras falando de sexo e desejo, com todo o charme que nos é atribuído.



08 abril 2013

Calçada, calçadinha...

"Calçada , calçadinha, eu sei que não é minha, não é do rei nem da rainha!"

Uma parlenda que me veio à memória hoje de manhã enquanto caminhava.

Ficou combinado que a rua é dos carros, ou seja, dos privilegiados, ascendidos socialmente que podem e devem ter e manter um carro. Afinal, antes mesmo da casa própria, a compra do carro faz parte do pacote de felicidade, vendido em suaves prestações. Quanto maior o veículo, maior o status. Ponto pacífico.

E as calçadas? Sempre achei que era dos pedestres, esses seres inferiores que não podem ou se recusam a ter um carro por questões absurdas, como qualidade de vida, ecologia, etc. Mas estava errada. Não, a calçada não é para pedestres. É para cachorros - muitos cachorros - ciclistas esportistas, ciclistas entregadores, skatistas...que mais? Qualquer coisa que não seja gente, inclusive os carros que entram e saem de prédios, lojas, escritórios e precisam passar pelas calçadas atropelando o que estiver pela frente. Afinal eles "têm carro"! Têm pressa, têm prioridade e não podem perder tempo.

Só isso? Já estava de bom tamanho, mas não para por ai. A calçada é da prefeitura, mas a responsabilidade de cuidar, manter e obedecer normas de urbanismo é do proprietário do edifício em frente. Então começa o vale-tudo: portões com uma barriga de grade para fora para caber o carro, escadinhas impossíveis, piso escorregadio, jardinzinhos ridículos, árvores que tiram a visão de quem atravessa a rua, esgoto escorrendo limoso e fedido, bueiros abertos. Que mais? Ambulantes vendendo café e bolo, fumantes que não têm mais onde fumar e buracos, muitos, muitos buracos. Crateras, poços, muros de pedra, o que você quiser, menos um simples caminho para quem anda a pé poder passar. Só isso.



25 março 2013

Nova face

Viajar era emocionante, mas foi ficando cansativo. Uma das poucas vantagens de estar num avião é poder ficar sem fazer absolutamente nada por algumas horas. 
Já estou nas alturas, sem preocupações nem cobranças apenas aproveito o tempo em minha companhia. Tiro um cochilo e acordo com o rosto no frio vidro. Ainda tonta, vejo pela janela o solo quadriculado, lembrando uma colcha de retalhos, mais precisamente uma colcha de retalhos de veludo cotelê, com todos os tons de verde, marrom e ocre. E a cidade na linha do horizonte, ali, como se fosse uma maquete morta, velha, empoeirada, arreganhando os poucos arranha-céus que também são sem vida, sem cor e se confundem com a poeira pairando no ar. Divago na descrição do cenário para tentar entender o que ocupa minha alma. Cochilo novamente.
Agora vejo as montanhas, com a neve branquinha que persiste nos cumes, lembrando um bolo de chocolate amargo polvilhado com açúcar de confeiteiro. Admiro o cenário e, nas montanhas, vejo a nova face da velha solidão. Das outras faces, conheço o medo de estar só, o vácuo de estar entre as pessoas que não mais me amam e que eu não amo mais, o vazio dos que se foram, a solidão das grandes decisões. Em segundos, vejo todas as faces fazendo parte de minha existência. Sobrevoando as montanhas do Colorado procuro gravar o momento, esta nova face que assusta e atrai dissolvida em fumaça. É bela, é uma solidão abençoada que me mostra que sou só, mas faço parte deste grande todo, onde os detalhes desaparecem  nas nuvens. 

Quanto tempo eu perdi com eles, que me deram uma identidade que eu não precisava ter e que absolutamente não me pertencia! Agora eu simplesmente sou.

Neste momento, a paisagem é lunar. As nuvens de carneirinho se confundem com as montanhas cobertas de neve. Não me lembro de ter visto nada parecido. Flocos de algodão doce e açúcar de confeiteiro...Sou meu pai e minha mãe, meu irmão e minha irmã, meu marido e minha esposa...Eu sou. 
Da janela, vejo apenas fumaça e luz. Paz  é o deleite de estar só. Sinto cada parte do meu corpo:  mãos ressecadas, cabelo despenteado, narinas dilatadas pelo ar pressurizado, mão e braço adormecidos, pernas inchadas e o coração em paz. Sinto-me só, deliciosamente só.

06 março 2013

Satisfaction

Ela revirou uma gaveta, pegou fósforos e um saquinho plástico. Ligou a vitrola portátil e pôs um LP de vinil importado: Rolling Stones. Depois acendeu um incenso e as velas que decoravam a cômoda. Atirou-se na cama, ajeitou as almofadas, acendeu o baseado com toda a calma do mundo e comungou-o comigo, até o finzinho. Roçou sua perna na minha coxa, subiu. Logo estávamos entregues ao desejo desatinado, o que não me impediu de olhar bem dentro dos seus olhos enquanto a beijava. I can't get no satisfaction I can't get no satisfaction 'Cause I try and I try and I try and I try I can't get no, I can't get no…

28 fevereiro 2013

Sincronicidade

Houve uma época em que eu seguia uma seita de origem oriental e, nessa seita, eles acreditavam no que chamavam de “ mundo espiritual”. Acreditavam que não existia reencarnação, mas os espíritos se comunicavam diretamente conosco. Dois mundos paralelos com vibração energética diferente, mas que se comunicavam quando havia brechas e/ou afinidades.

Um belo dia, estava eu atrasada , indo buscar as crianças na escola, quando tive a exata impressão de ter, ao meu lado, um ser de luz, de quem eu só via os pés, bem limpinhos e branquinhos, com unhas redondas e bem polidas. Como por pensamento ele me dizia, em inglês, que eu olhasse bem para os pés dele e que confiasse nele. Porém, que desconfiasse de aparições que não mostrassem os pés. Quase bati o carro por causa dessa sensação e achei melhor encostar o carro num lugar seguro. Peguei uma caneta e um bloco ( sempre tenho uma caneta e um bloco) e anotei tudo o que ele ia me passando por uma espécie de telepatia, uma comunicação sem palavras. Disse seu nome, Shong Lou Wang. Aflita com o horário, não conseguia mais me concentrar e então ele disse que eu precisava ser mais vertical, ter mais confiança na minha intuição, ser bem louca, tão louca quanto eu achasse que poderia ser, pois o mundo precisa de gente louca que faça coisas diferentes. Hã!

Cheguei a desenhar com canetinha colorida a imagem que eu achei ter visto, mostrei para o chinês da lojinha do bairro, ele disse que aquele era um sábio, o que para nós ocidentais poderia ser um anjo. Outras pessoas, de outras crenças já o viram perto de mim, meu filho sonhava com ele.

Tempos depois fui para São Francisco - Califórnia - ao sair do aeroporto, na rua, confesso, estava perdida, não sabia para onde ir. Isso aconteceu nos anos 80, as pessoas viajavam menos, não havia wifi, nem celulares, nem mapas no Google. Fui para um ponto de ônibus, devia estar com cara de assustada, quando um senhor chinês, bem velhinho, se aproximou. Bem vestido, inglês fluente, perguntou se podia me ajudar. Sim, claro que podia, como chegar à rua tal, número tal, hotel Holiday Inn. Sorriu, fofo. Muito fácil, muito fácil...explicou com calma e clareza. O ônibus chegou e eu cheguei onde tinha que chegar. Amei a cidade, me senti em casa. Comprei uma caixinha de música só para poder ir lá, a hora que quiser,  em pensamento.
Nos anos 90 minha filha se mudou para uma cidadezinha próxima a São Francisco e eu tive outras oportunidades de curtir o lugar. Meu sábio chinês às vezes aparece, fica triste quando me esqueço dele, está sempre à disposição. Achei uma foto de uma turminha de sábios chineses e ele está entre eles. 

20 fevereiro 2013

Hora do rush...


Trânsito infernal, tudo parado e o motor do carro dá seu último suspiro bem no meio do viaduto. Buzinas não me estressam porque não posso fazer nada. Chove torrencialmente não vou sair para pedir ajuda para não estragar meu sapato novo de R$600,00. Desligo o rádio: A Voz do Brasil agora, não! Aparece um guarda envolto em plástico, bate no vidro e me manda ir para o acostamento. Desligo o motor, dou a chave na mão dele e me arrasto para o banco do passageiro. É claro que ele não pega, reclama e gesticula mandando os outros carros desviarem. O congestionamento começa a diluir. Um bom samaritano para no acostamento e vem ajudar, os dois encostam meu carro, eu agradeço. Ligo para umas quatro ou cinco pessoas pedindo ajuda, ninguém pode. Meus filhos me chamam no viva voz perguntando se podem fazer pipoca – estão com fome. As luzes da rua acendem e o guincho não chega. Já fumei meio maço de cigarros, arrumei a bolsa, lixei as unhas, falei com minha mãe. As crianças agora querem saber se podem pedir pizza, ouço a televisão à toda e a trilha sonora da novela Salve Jorge!

15 fevereiro 2013

Luto



Velório digno, caixão com alças douradas, muitas flores abafando melancolias. Não vejo mais meu irmão, vejo um boneco de cera bem vestido e descorado. E agora? Como vamos fazer? – pergunto em pensamento. – Agora, nada. Não é mais problema meu – responde o fantasma sobrepairando o corpo. Pescávamos girinos no riachinho, fazíamos pipa com bambu, jornal e cola de farinha. Inventamos um cineminha com tiras de gibi, ouvimos Beatles e Rolling Stones, trabalhamos juntos com a mesma afinidade dos tempos de criança. Semana passada, fui lhe fazer companhia: cantamos. Sabíamos que era uma despedida, eu quis falar, você não deixou. Estou saindo da empresa, sem você lá não faz sentido. E agora? Agora nada. A vida continua desfalcada.

05 fevereiro 2013

Mauro 5

Hoje não fui. Nem ontem. Piorei.
Vou mandar um e-mail para a clínica.

01 fevereiro 2013

Mauro 4


Hoje ele não passou gel e acertou a barba, ou acertaram para ele. Ficou uma espécie de cavanhaque sem bigode - deve ser moda - com um tufinho abaixo do lábio inferior. Fones de ouvido ligados no tablet, que agora tenho certeza fazer parte do seu corpo,  e eu consigo ouvir a batida do rock.  Chego cinco minutos atrasada, ele me diz que não tem importância, eu fico olhando para a parede achando que mais alguém vai chegar. Sexta-feira, as pessoas faltam e eu espero mais uns dez minutos até que sou convidada a subir. Mesma rotina, mesmos comentários mecânicos e eu lá, cheia de eletrodos em pontos que não estão doendo,  tomando choquinhos.
- A dor é mais no braço, bem aqui ó...aqui.
 - Mas no pedido está escrito inflamação no ombro. Quando apitar avisa.

Não vou avisar.

Mauro 3

- Pode subir. Como a senhora passou de ontem pra hoje? Melhorou?
- Pouquinho.
- E o trabalho? Tudo bem? Como é que tá lá?
- Tudo bem.
- A senhora é séria assim mesmo?
- Sou.
- Por quê?
- Porque sou uma senhora, responsável e com dor.
- Não dá risada nunca?
- Na hora certa e no lugar certo.
- Mas dar risada é bom, não é? Descontrair, fazer piada, né?
- Claro que é, mas eu estou com dor. Você não vai fazer ultrassom?
- Sabe o que é? Tem que ficar passando e eu perco tempo, não posso ir atendendo os outros. O tense é melhor, eu  ligo e deixo a senhora aí enquanto atendo os outros. Tá doendo?
- Tá.
- É assim mesmo.
- E você quer que eu fique dando risada...

Mauro 2

- Eu trouxe a ressonância e a tomografia.
- Não precisa, eu já sei o que é.
- Tendinite, epicondilite... o médico disse que...
- É, eu já sei. Vamos lá.
- Choquinho de novo? Ontem doeu muito.
- Hoje não vai doer. Quando apitar me avisa, tá bom?

- Mauro, Maurooo
- Péra aí.
- Caiu tudo aqui...
- Apitou?
- Não.
- Então espera.

- Essa fita crepe é uma porcaria. Vou encher de fita pra não cair. Pronto. Quando apitar avisa.

- Mauro, desculpe, mas tá doendo.
- Apitou?
- Não. Mas tá doendo.
- É assim mesmo.



30 janeiro 2013

Mauro


Descobri seu nome por acaso. Vinte e poucos anos, argolinha de prata na orelha esquerda, anel de formatura. Cabelo espetado cheio de gel, óculos de metal na ponta do nariz e um tablet que parece fazer parte do seu corpo desleixado. Aperta o botão que abre a porta, cumprimenta quem entra na clínica, atende ao telefone fixo, indica onde é o banheiro. Não tira os olhos da tela!
Reparo seu rosto redondo, a barba crescida e mal desenhada. Não deixou bigode, de certo para realçar sua boca carnuda. Não sorri, boceja o tempo todo. Finalmente se levanta e começa a embaralhar guias de consulta. A calça jeans, com braguilha meio aberta, deixa aparecer uma cueca preta. Não consigo desviar meus olhos do elástico encardido e frouxo. Chama a senhora de cadeira de rodas e aponta com o braço a sala em frente - sem levantar a cabeça. Ouço meu nome e o braço agora indica a escada. “Vamos lá?” Ele é o fisioterapeuta, por isso o anel destoando do resto.