“Dos Nervos” ( Hedra, 2004) . Um pequeno livro
de 47 páginas cuja capa, irritantemente
amarela, condiz com o título e com narrativa
ágil e nervosa do autor.
Duas histórias paralelas
, que literalmente jamais se encontram , conduzem o leitor por uma estrada reta
e árida onde, na paisagem à direita, vê-se uma professora de literatura
sucumbir ao delírio de ver um estranho em sua casa e ouvir a voz de sua mãe repetindo
sem parar que a filha deveria cuidar dos nervos. À esquerda, a paisagem muda completamente e
vai para a final de um campeonato de xadrez onde dois jogadores experientes, um
mais velho e um mais novo, disputam importante título.
Na história da professora
o autor escreve em primeira pessoa e usa bastante o recurso do anacoluto,
quebrando frases e ajudando o leitor a entrar no desvario da personagem que a
leva a um nonsense tragicômico e
intrigante. Apaixonada pelos textos do
Padre Vieira, a jovem perturbada diz preferir “uma conversa civilizada e
inteligente” ao sexo. Nesse conto, percebe-se claramente a familiaridade do
autor com a psicanálise por sua capacidade de expressar tão bem essa neurose
contemporânea que coloca a intelectualidade acima das relações amorosas e/ou
familiares, além do eterno conflito entre mães controladoras e filhas eternas
adolescentes.
O nervosismo contido dos enxadristas e a moça que sofre dos nervos podem ser o fio
condutor. Para quem não é jogador de xadrez, não fica muito fácil perceber a emoção do jogo por causa do
vocabulário específico. No capítulo Seis, quando entra pela primeira vez a
narrativa do conto , a palavra zugzwang leva os não iniciados à pesquisa (é um
termo de origem germânica que pode significar um impasse ou até mesmo a derrota). Logo a
seguir, no capítulo Sete, o primeiro parágrafo faz uma apresentação detalhada dos
jogadores e exige uma segunda ( ou até
terceira) leitura:
“ [Segundo os árbitros de federação, Ki
sentou-se ao tabuleiro com cinco minutos de atraso. O grande mestre não
cumprimentou ninguém... ] [ ...O oponente não chegou a se surpreender... ] [...Já
há alguns anos vários comentaristas vinham dizendo que apenas Ki poderia
ameaçar a sua posição de campeão do mundo. ..]
[...o campeão avançou igualmente o peão até e5 e abriu espaço para que os comentaristas no
salão ao lado previssem que a abertura seria uma Ruy Lopez sem novidades até
perto do vigésimo lance. Todo mundo sabia que o campeão, cujo azar atribuía as
peças pretas logo na primeira partida, não arriscaria uma Siciliana, maior
especialidade de Ki. “
Entende-se que Ki é o grande mestre, quinze anos mais
novo que seu oponente Ka, o campeão do mundo. Pelo raciocínio mais comum , o grande mestre
deveria ser o mais velho e o campeão talvez o mais novo, no entanto, o que
acontece é justamente o contrário. Lísias revela que se inspirou em Kasparov, o
maior campeão de xadrez de todos os tempos, e Kraminik, grande mestre, de fato
13 anos mais novo que o campeão. Observa-se
a similaridade nos nomes – Ke e Ka – bem
como nos títulos, confundindo um pouco a compreensão.
Expressões como “
abertura Ruy Lopez” e “uma “Siciliana”, obrigam
a mais pesquisa para entender , por
exemplo, que a abertura Ruy
López é a mais famosa, devendo o seu nome jogador espanhol do século XVI, Ruy López de
Segura. E que Siciliana não é uma abertura e sim uma defesa das
peças negras face ao primeiro lance do peão de rei das brancas.
Ao final do conto “Elegantemente Ki tomou-lhe o bispo e fez o
campeão cobrir o xeque com a dama. Quem gosta de partidas históricas, mesmo se
for um exilado político, sabe que um campeão do mundo nunca foi tão
destroçado.” De fato, para quem acompanha partidas históricas deve ter sido
emocionante.
Ricardo Lísias é graduado em letras, mestre em
Teoria Literária e doutor em Literatura, além de tradutor de “Oliver Twist”, de
Charles Dickens, terminando um trabalho iniciado por Machado de Assis.
Seus livros
“Cobertor de estrelas” (Rocco, 1999),” O Capuz ,
“Sai a Frente” e “Vaca Brava”( Hedra 2001), “Dos nervos” (Hedra, 2004), “Duas praças”
(Globo, 2005), “Greve Contra Guerra” (
Hedra 2005)“Anna O. e outras novelas” (Globo, 2008)- coletânea da qual “Dos
Nervos” faz parte, “O livro dos mandarins” (Alfaguara, 2009), o Céu dos
Suicídas ( Alfaguara 2012) são muito bem aceitos pela crítica em geral, principalmente pelos críticos mais jovens.
Seu próximo romance será sobre
divórcio, inspirado em sua experiência pessoal de se
divorciar após quatro meses de casamento.
Ainda na casa dos 30 anos
e com tantos livros publicados, Lísias destaca-se
por ser visceral, consciente e atento ao
que lhe vai pela alma diante dos inevitáveis percalços da existência. Seu
estilo sofisticadamente simples de desvendar os estranhos códigos “ dos nervos”
deixa transparecer a dedicação e disciplina ao fazer, segundo ele mesmo, o que
mais gosta de fazer na vida: escrever todos os dias.
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