01 agosto 2014

DOS NERVOS - RICARDO LÍSIAS

 “Dos Nervos” ( Hedra, 2004) . Um pequeno livro de  47 páginas cuja capa, irritantemente amarela,  condiz com o título e com narrativa ágil e nervosa do autor.
Duas histórias paralelas , que literalmente jamais se encontram , conduzem o leitor por uma estrada reta e árida onde, na paisagem à direita, vê-se uma professora de literatura sucumbir ao delírio de ver um estranho em sua casa e ouvir a voz de sua mãe repetindo sem parar que a filha deveria cuidar dos nervos.  À esquerda, a paisagem muda completamente e vai para a final de um campeonato de xadrez onde dois jogadores experientes, um mais velho e um mais novo, disputam importante título.
Na história da professora o autor escreve em primeira pessoa e usa bastante o recurso do anacoluto, quebrando frases e ajudando o leitor a entrar no desvario da personagem que a leva a um nonsense tragicômico e intrigante.  Apaixonada pelos textos do Padre Vieira, a jovem perturbada diz preferir “uma conversa civilizada e inteligente” ao sexo. Nesse conto, percebe-se claramente a familiaridade do autor com a psicanálise por sua capacidade de expressar tão bem essa neurose contemporânea que coloca a intelectualidade acima das relações amorosas e/ou familiares, além do eterno conflito entre mães controladoras e filhas eternas adolescentes.
O  nervosismo contido  dos enxadristas  e a moça que sofre dos nervos podem ser o fio condutor. Para quem não é jogador de xadrez, não fica muito  fácil perceber a emoção do jogo por causa do vocabulário específico. No capítulo Seis, quando entra pela primeira vez a narrativa do conto , a palavra zugzwang  leva os não iniciados à pesquisa (é um termo de origem germânica  que  pode significar um  impasse ou até mesmo a derrota). Logo a seguir, no capítulo Sete, o primeiro parágrafo faz uma apresentação detalhada dos jogadores  e exige uma segunda ( ou até terceira) leitura:

“ [Segundo os árbitros de federação, Ki sentou-se ao tabuleiro com cinco minutos de atraso. O grande mestre não cumprimentou ninguém... ] [ ...O oponente não chegou a se surpreender... ] [...Já há alguns anos vários comentaristas vinham dizendo que apenas Ki poderia ameaçar a sua posição de campeão do mundo. ..]  [...o campeão avançou igualmente o peão até e5  e abriu espaço para que os comentaristas no salão ao lado previssem que a abertura seria uma Ruy Lopez sem novidades até perto do vigésimo lance. Todo mundo sabia que o campeão, cujo azar atribuía as peças pretas logo na primeira partida, não arriscaria uma Siciliana, maior especialidade de Ki. “
Entende-se que Ki é o grande mestre, quinze anos mais novo  que seu oponente  Ka, o campeão do mundo.  Pelo raciocínio mais comum , o grande mestre deveria ser o mais velho e o campeão talvez o mais novo, no entanto, o que acontece é justamente o contrário. Lísias revela que se inspirou em Kasparov, o maior campeão de xadrez de todos os tempos, e Kraminik, grande mestre, de fato 13 anos mais novo que o campeão.  Observa-se a similaridade nos nomes – Ke e Ka –  bem como nos títulos, confundindo um pouco a compreensão.
Expressões como  “ abertura Ruy Lopez”  e “uma “Siciliana”, obrigam a mais pesquisa para entender ,  por exemplo, que a abertura Ruy López é a mais famosa, devendo o seu nome jogador espanhol do século XVI, Ruy López de Segura. E que Siciliana não é uma abertura e sim uma defesa das peças negras face ao primeiro lance do peão de rei das brancas.
Ao final do conto “Elegantemente Ki tomou-lhe o bispo e fez o campeão cobrir o xeque com a dama. Quem gosta de partidas históricas, mesmo se for um exilado político, sabe que um campeão do mundo nunca foi tão destroçado.” De fato, para quem acompanha partidas históricas deve ter sido emocionante.
Ricardo Lísias é graduado em letras, mestre em Teoria Literária e doutor em Literatura, além de tradutor de “Oliver Twist”, de Charles Dickens, terminando um trabalho iniciado por Machado de Assis.
Seus livros “Cobertor de estrelas” (Rocco, 1999),” O Capuz , “Sai a Frente” e “Vaca Brava”( Hedra 2001),  “Dos nervos” (Hedra, 2004), “Duas praças” (Globo, 2005), “Greve Contra  Guerra” ( Hedra 2005)“Anna O. e outras novelas” (Globo, 2008)- coletânea da qual “Dos Nervos” faz parte, “O livro dos mandarins” (Alfaguara, 2009), o Céu dos Suicídas ( Alfaguara 2012) são muito bem aceitos pela crítica em geral,  principalmente pelos críticos mais jovens. Seu próximo romance será sobre divórcio, inspirado em sua experiência pessoal de se divorciar após quatro meses de casamento.

Ainda na casa dos 30 anos  e com tantos livros publicados, Lísias destaca-se por ser visceral,  consciente e atento ao que lhe vai pela alma diante dos inevitáveis percalços da existência. Seu estilo sofisticadamente simples de desvendar os estranhos códigos “ dos nervos” deixa transparecer a dedicação e disciplina ao fazer, segundo ele mesmo, o que mais gosta de fazer na vida: escrever todos os dias.


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