Jardim Alheiro -
Entre os mendigos bêbados da cidade, todos sem nome e sem
esperança, destaca-se um pobre desvairado que, esse sim, tem a esperança de reencontrar
sua amada. Imprime N em toda a parte da cidade, até no seu próprio corpo, tendo
certeza de que, ao identificar a primeira letra de seu nome, ela correrá para
seus braços.
Parágrafo único, texto impecável e uma característica
fundamental do que eu considero ser boa literatura: a capacidade de conquistar
o leitor desde a primeira linha. De fato, fui capturada pelo mendigo, pela
amada que não vem, pelos personagens, pelo cenário miserável do submundo da
grande cidade.
Conhecido por seu amor incondicional à sonoridade e beleza
das palavras, Evandro, na pele do mendigo, recita monólogos com interlocutor
anônimo a quem chama de senhor, repete um A-hã, como se pontuasse as pausas
para o mendigo poder pensar no que dizer.
Cria mantras inusitados como “ ela virá eu sei”, ou “ oi, meu amado,
voltei”, inventa “trouxe-mouxes”, traz a fedentina e o cheiro de alecrim aos
narizes, toca os ouvidos com palavras-acordes como “farandolagem”, “parlapatice”,
“escâncaras”, “escangalhar-se”, “fogo-fátuo” além de anjos que cantarolam My Funny Valentine.
“O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de
Rotterdam” conta uma história que acontece a um metro e meio do chão. Não há
céu, não há nada acima das cabeças maltrapilhas, a não ser a indiferença e a repugnância
dos mais privilegiados. A mulher-molusgo, o menino-borboleta, o maltrapilho
alcoólatra de rosto intumescido passaram a fazer parte da minha rotina enquanto
lia o livro.
Pesquisei sobre Erasmo – “primeiro humanista a ganhar a vida
com o que escrevia” - localizei-o na história, lembrei-me de um dia ter
estudado latim, quis entender mais sobre Sócrates e descobrir um Lutero
diferente do que eu conhecia nas aulas de catequese. Fui escutar Boweavil blues com Bessie Smith no
Youtube, procurei nos meus CDs Billy Holliday, Chat Baker, Vila Lobos. Um susto
ao confirmar a relação incestuosa do menino-borboleta que, no momento de
excitação incontrolável, recosta a cabeça no colo da mulher-molusco e sobre o
vestido lhe morde o sexo.
Há muito tempo que eu não chorava, nem com um filme, nem com
um livro, nem com a minha própria vida, pois a maturidade nos dá certa
imunidade, além da certeza de já ter visto muito, de quase tudo. Entretanto, ao
final do livro, quando o maltrapilho alcoólatra de rosto intumescido morre, os outros mendigos lhe prestam homenagem:
cantam, dançam cambaleiam no ‘réquiem dos desvalidos’ nas palavras do autor
chorei sentido. Mais um que é “jogado prematuramente no barco de Caronte” e a
mulher-molusgo faz o sinal da cruz quando chega o camburão para levar o defunto.
A degradação do ser humano, a profunda tristeza e a beleza em meio toda miséria
– isso muito me comoveu e ainda comove.
Irritantemente modesto, provocativamente sincero, esse é Evandro
Affonso Ferreira, o escritor que me inspira por sua sensibilidade e absoluto
domínio das palavras. Dizer mais seria retundante – para usar uma palavra
sonora bem ao gosto do autor.
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