27 dezembro 2015

Sorte

De vez em quando dona Samira aparecia para pedir café torrado na hora e moído mais fino, que só o Zé sabia preparar. Geralmente passava lá quando ia à catedral ortodoxa, era apaixonada por um padre há anos, parece que ele também gostava dela, amor platônico, só suspiros e olhares: a religião sempre estava em primeiro lugar. Samira era devota, participante na comunidade, de vez em quando lia a sorte na xícara de café para amigas que precisassem de conselhos, fazia uns pasteizinhos de massa de ricota e recheio de presunto que eram uma delícia.

Um dia Zé disse que queria aprender a fazer café árabe. Ela concordou, desde que ele tivesse os apetrechos certos, senão não ficava bom. Fariam o café para ler a sorte dele.

- O que é que eu tenho que comprar, dona Samira? Onde vou achar essas coisas?
- Você tem que ir à rua 25 de março. Pega o metrô aqui perto, desce na São Bento, pega a Ladeira Porto Geral, num instante você está lá. Pode ir no domingo, está tudo aberto. Xícara não precisa, essa branca que você tem serve. Açúcar também tem aqui e o pó que você prepara está muito bom, está ótimo! Água filtrada, melhor.
- Tudo bem dona Samira, que mais precisa?
- Um bule especial com um cabinho de madeira. Já viu? Lá na 25 tem, você compra um. Compra um maior, assim, se algum dia alguém pedir você faz café árabe aqui. Compra xicrinhas sem asa também, é bonito servir direito, numa bandeja redonda. Depois que você tiver tudo, eu passo aqui e a gente faz o café, está bem? Ah, não se esqueça de comprar cardamomo, são umas sementinhas que dão um sabor especial.

Estava ótimo! Zé comprou tudo, e dona Samira ensinou: cinco xícaras de café de água, duas colheres de chá de açúcar, cinco colheres de chá de café em pó e cardamomo. Ponha para ferver a água em fogo médio, acrescente o açúcar, o pó de café e mexa. Quando subir abaixe o fogo, mexa; deixe ferver de novo, tire do fogo e ferva mais uma vez. Cuidado para não derramar enquanto ferve. Aguarde uns instantes para o pó assentar, sirva sem encher demais a xícara.

Ficou delicioso. Quando terminou de beber, dona Samira cobriu a xícara com o pires e pediu para Zé segurar a xícara tampada com a mão direita e dar três voltas sentido anti-horário, depois desvirar e esperar escorrer. Esperou uns minutos e mostrou o desenho que a borra do café havia formado no fundo. Ficou olhando concentrada, depois falou:

-Vejo caminhos abertos para você, muito trabalho, dinheirinho entrando, está vendo as moedinhas aqui? Dinheiro entrando, pouquinho, mas tem. Olhe aqui no fundo, tem duas mulheres, um coração dividido ao meio. Tristeza, muita tristeza. Muitas pessoas na sua vida... Olha aqui que engraçado, tem uma criança. Você tem filho, Zé?

Dona Samira foi falando, descrevendo as figuras, apontando e Zé não conseguia ver nada. Achou que o cardamomo era um tipo de droga. Estava impressionado como a boa senhora adivinhava até o que ele estava pensando. No final, ela pediu para Zé colocar o dedo indicador no fundo, virar a xícara e pensar em algo que ele queria que acontecesse. Ele fez, pensou, limpou o dedão no avental e ficou esperando.

- O que você pediu vai acontecer com sucesso. Você vai conhecer umas pessoas que estão muito próximas daqui, mas vocês nunca se encontraram. Sua vida vai mudar. Para sempre! Gostou? Espero que sim. Faça o café várias vezes, até acertar o ponto. Qualquer dia desse eu venho aqui provar. Agora tenho que ir até a igreja.


E lá foi ela em seu passinho apertado, dando adeuzinho e sorrindo.

21 dezembro 2015

Sobre o livro Sopro de Concha Celestino


SOPRO- Concha Celestino -  Livrus - 2015

Com lançamento de sua primeira novela de ficção, Concha Celestino teve movimentada tarde de autógrafos
No dia 3 de outubro de 2015, Livraria Martins Fontes da Paulista,  na seção de artes, uma fila de leitores aguarda ter seu livro autografado  por essa paulistana que faz seu primeiro vôo solo e não passa despercebida. Integrante do coletivo literário Martelinho de Ouro, que por sua vez nasceu no b_arco, em uma das oficinas de Marcelino Freire, Concha participou de Achados e Perdidos, Serendpt e dos dois fanzines do grupo lançados na Balada Literária de 2014 e 2015.

Concha Celestino graduou-se em Letras na USP e trabalhou como professora de Português e Inglês. Mas foi só em 2007 que começou a frequentar o Escrevivendo, na Casa das Rosas, e arriscou-se a compartilhar seus belos textos. Impossibilitada de dar aulas por problemas de saúde, optou por colocar no papel sua sensibilidade e talento, na ocasião, ainda tímidos. Um dia, motivada por uma foto de Otto Stupacoff, escreveu um conto sobre Ian, um garoto que fica de castigo na escola por desenhar na parede com giz. Esse menino ganha pai, o pintor Marco, e mãe, a delicada Flora, e a narrativa vai tomando corpo. Segundo Concha, o envelhecer, os lapsos da mente, são aspectos da vida que a intrigam, pois trazem sentimentos ambíguos. Pensando nisso, surge a mãe de Flora, a velha Valentina que vive em uma clínica de repouso, e a avó de Flora, Ana Filotéia, que aparece em sonho para as duas. Nesse universo feminino entra Daluz, a cuidadora e cria da casa, e a “malvada” Tonha, a irmã de Valentina, alvo de suas implicâncias e ciúmes.

A obra é apresentada por um narrador, que logo se perde, dando voz à Flora cuja narrativa é mesclada com a da mãe. Marco, sempre no atelier, também narra seus conflitos e “nebulosidades”, como diz a autora.

A linguagem é fluida, e essa sobreposição de narradores pode confundir o leitor, mas não chega a atrapalhar o fluxo do texto, onde a natureza vai permeando os pensamentos dos personagens e trazendo certa poesia, que, de certa forma parece os confortar em meio a tanta dor.  Com sensibilidade e domínio total do texto, a autora nos surpreende com frases como  “Ontem mesmo, quebraram meu sono a marretadas, uns baques surdos estremeciam chão, paredes, cama, armários.”. 

Traz  sinestesia quando diz “...sentir o cheiro das frutas amadurecendo nas árvores”, ou “... dois troncos vigorosos subiam lado a lado, quase iguais, e só no alto abriam-se em galhos, espalhando sua renda móvel sobre o fundo azul.”.

Muita vezes tragicômico, o mau humor da velha aparece. Por um lado, ela já está cansada de viver e, por outro, viaja no tempo em que era criança e brinca livre no Venhaver, sítio à beira-mar onde nasceu e para onde quer voltar. As imagens lembram quadros de Sorolla quando se lê frases como “Vi logo que era vó Filó pelo andar inconfundível, seu modo de plantar os pés na areia e de mover o corpo com suavidade, como se planasse. A espuma lambia-lhe os pés, sua saia e os cabelos revoavam, saturados de luz”... Ou quando a autora descreve  que “ ela já flutuava acima da água, a saia ondulante inflada como um balão...

Publicado pela Livrus Editorial em 48 capítulos breves, porém densos, tem capa e projeto gráfico idealizados pela autora que, segundo a publisher da Livrus, Cris Donizete, cuidou pessoalmente de cada detalhe. “Veio com projeto bem constituído na cabeça, fez um belo trabalho de pesquisa. Ao mesmo tempo exigente e fácil de lidar, Concha acompanhou tudo passo a passo”, explica Cris.

Especialista em e-books, Ednei Procópio, o editor conta que a versão de SOPRO em e-book está em todos os portais de vendas de livros eletrônicos. Quanto ao lançamento, afirma que as vendas da versão impressa foram além das expectativas. “Se tivéssemos feito mais livros, teríamos vendido.”.  

Responsa

Zé, estou grávida.
--Grávida. GRÁVIDA???
--É.
--Não pode ser. Não pode ser. A gente nunca...
--Foi naquele dia, lembra? A gente achou que dava? Não deu.
--E agora? O que a gente vai fazer?
--Nada. Eu quero o bebê. fui ao médico. Está tudo bem, não se preocupe, eu queria contar pra você porque estou feliz.
-- Como assim? Não estou entendendo. Eu não estou pronto ainda.
--Eu disse que vou ter o bebê, você não precisa me dar nada. Eu quero ter essa criança e ela será muito feliz. Eu quero muito.
--Preciso de tempo para pensar, depois tem a Dalva na parada, você sabe que eu estava com ela quando a gente andou saindo.
--Claro que eu sei. Nunca te cobrei nada. Quer saber?  Acho que ela tem mais a ver com você do que eu. Estou num emprego estável, dou conta, depois minha mãe sabe, liguei para ela e ela vai me ajudar. Faz tempo que não tem criança na família.
--Menina, que loucura! Você me pegou de surpresa. Estou besta, não sei o que dizer. Preciso pensar, me dá uns dias. O café está cheio tenho de voltar...
--Olha Zé, você é uma pessoa muito legal e eu estou feliz que seja o pai do meu filho, mas acho melhor a gente não se ver mais. Eu estou bem, nós vamos ficar muito bem. Fique tranquilo.
--Espera aí! Qual é? Você vem aqui, me dá um puta susto, me conta que eu vou ser pai e vai embora assim? Não está certo. Eu tenho responsabilidade. Olha só, vou dentro pegar um dinheiro para você. Você me espera? Hein? Fica aí, eu volto já.
--Está bem, eu espero.



Zé entrou no minúsculo depósito, pegou uma caixa de sapato e separou umas notas que estavam enroladas em um elástico. Quando ele voltou com dinheiro na mão ela não estava mais. Zé saiu pela rua gritando seu nome, mas ela havia desaparecido.

13 dezembro 2015

Desgraçada...

Ele perambulou a noite toda. Por fim, sentou-se na calçada encostado à porta de ferro e ficou esperando o café abrir. Estava acabado, puto de raiva, com ódio, remorso, tudo junto. Zé vinha andando e falando ao celular, passou pelo cara acabado e foi procurar a chave no bolso da calça. Abriu aporta de ferro e o fulano foi logo entrando e pedindo uma média. Que coisa! Era cedo ainda, Zé precisava ainda esquentar a máquina, organizar as xícaras. O homem não estava com pressa, podia esperar. Sentou-se. Um tempo depois, quando Zé trouxe a média e perguntou se queria um pão de queijo ele disse que não e foi logo falando o que havia acontecido na noite anterior.

Quando ele e a mulher (eram casados há 10 anos) voltaram do super mercado era quase meia-noite. Os dois, cansados, tiraram as compras do carro, colocaram tudo em cima da mesa da cozinha e, sem dizer uma palavra, foram acomodando os alimentos nos seus devidos lugares.

Ele segurava na mão um desajeitado vidro de maionese de um litro (que ela insistiu e fez questão de comprar), olhava desanimado para o interior da geladeira pensando onde iria acomodar aquele trambolho, quando ela falou:

- Acabou, Norberto. Quero me separar de você. Esse casamento é uma hipocrisia, não estamos juntosmuito tempo, é melhor cada um ir cuidar da sua própria vida antes que a gente sofra mais. Afinal a gente ainda não tem filhos. Não é isso que eu quero para mim, sabe? A gente ainda é jovem pode recomeçar, nossos interesses são muito diferentes e, quer saber? Acho que foi tudo um grande engano. Não aguento mais discutir a relação, não tem diálogo, só eu falo. Olha aqui, o problema não é você, sou eu, entende? Você é quase perfeito, amigo, carinhoso, independente, mas está faltando alguma coisa, sabe?

Não, ele não sabia. Segurando o vidro ele ficou. Parado, de boca aberta olhava para ela como se estivesse vendo um extraterrestre. E ela continuou com mil argumentos, clichês que ele não conseguia ouvir.

Estava em estado de choque. Ainda com o vidro na mão perguntou se havia outra pessoa. podia ser isso: alguém no pedaço e ele , feito um corno idiota. Ela negou, jurou pela mãe, disse que ele estava louco, que não era nada disso, que simplesmente o amor havia acabado. Que ela estava confusa, precisava ficar sozinha, dar um tempo.

- Desgraçada!!! - gritou ele atirando o vidro de maionese na parede, com toda a força que a raiva conseguiu juntar.
- Des-gra-ça-da!!!

E saiu batendo a porta dos fundos com tanta força que a porta da geladeira, que já estava apitando de tanto tempo aberta, também bateu. Ela ficou parada. Um tempo depois pegou um pano e começou a limpar os azulejos cheios de maionese.


        Quando ele voltou para casa na manhã do dia seguinte tudo estava na mais perfeita ordem. A cozinha impecável, os jornais dobrados, a cama feita e as roupas no lugar. Abriu a porta do armário dela para ver se ela havia levado as roupas. Não. Tudo estava na mais perfeita ordem, para variar.

06 dezembro 2015

Gente fina

Zé está de olho numa  velhinha que vem vindo devagar. Apoiada na bengala e carregando uma sacola de pano no braço, vem pelo lado de dentro da calçada, quase esbarrando nos muros, talvez para se sentir, de certa forma, apoiada. Porte altivo, bem arrumada e toda penteada, tem um rosto aristocrático. Apesar das rugas, e do excesso de maquiagem, ainda conserva belos traços. Parece uma baronesa. Passa em frente ao café e para. Sacudindo a bengala, chama o Zé e pergunta:
 - Você aí! Venha cá meu rapaz. Preciso de um café com leite bem clarinho e um copo de leite morno, à parte. Você poderia fazer a gentileza de me servir?
Claro que poderia. Fazendo uns salamaleques, com um cuidado exagerado, Zé ajuda a velhinha a se sentar e vai providenciar o pedido. Viu logo que era uma fina senhora.
Enquanto isso, a dama abre a sacola de pano, tira um pedaço de pão embrulhado em papel-toalha, uma faquinha de plástico e um gato. Coloca tudo em cima da mesa. Chama o Zé novamente, pede um pires e um pouquinho de manteiga.
Zé, que tinha alergia a gatos, fica apreensivo. Não achava nada bom um gato em cima de uma das mesas, poderia espantar a clientela, mas não abre a boca. Espirra feito louco e esfrega os olhos, que já estavam vermelhos. Leva tudo o que foi pedido, atencioso, mas invocado. Depois, se acalma, vai fazer outra coisa e não presta mais atenção na velhinha que passa manteiga no pão, despeja o leite no pires e fica por ali bastante tempo. De barriga cheia, o gato dorme ao sol, com a cabeça ligeiramente pendida da beirada da mesa.
Depois que a baronesa saiu, Zé limpou tudo muito bem com um pano com álcool. Quando lavou a calçada no fim do dia, jogou creolina pura e uns baldes bem cheios de água. Pelo jeito não adiantou porque ninguém mais sentou naquele lugar. Reclamavam de cheiro de xixi.


29 novembro 2015

Nuvem de fumaça

      Zé chegou para trabalhar desanimado. Fumou um cigarro na esquina, voltou para o café e começou a limpar as mesas sem vontade de nada.
Ainda não era hora de movimento, havia uma pessoa aqui outra ali e bem na última mesa, no meio de uma nuvem de fumaça, uma loira aguada e com olhar de peixe morto fumava... Pensativa. O cabelo amassado estava preso por uma faixa de cetim totalmente inapropriada, a maquiagem meio borrada e vencida, reluzia colorida demais para a luz da manhã. Para se animar, Zé deu uma conferida e achou a mulher sem graça, peituda, mas sem graça. Continuou colocando os guardanapos, o açúcar e o adoçante, foi ajeitando aqui e ali. De vez em quando, dava uma olhadinha de esguelha para a loira. Será que ela estava esperando alguém?
O café foi enchendo, as pessoas começam a fazer pedidos, a falar mais alto e o movimento da clientela animou nosso amigo, que entre um pedido e outro bebeu um gole conhaque direto da garrafa que mantinha bem escondida. Limpou a boca na manga da camisa e continuou de olho na loira sozinha, fumando. pelas tantas, entra um sujeito falando ao celular, vai direto para o fundo do café, puxa a cadeira com pressa e se senta em frente à loira que esmaga o cigarro e faz cara de nojo.

Zé, que havia visto tudo, procurou rodear a mesa para ver se ouvia alguma coisa, mas não conseguiu. O homem falou, falou e falou sem parar. A loira sorriu e soltou uma gargalhada. O homem levantou-se irritado, jogou sobre a mesa cinco notas de R$100,00 e saiu do mesmo jeito que entrou. A loira pediu a conta e quando Zé foi levar, ela, que estava de , arremessou os peitões contra o peito de Zé, deu-lhe um beijo cinematográfico e saiu.
Nunca mais apareceu no café.

22 novembro 2015

Aqui jazz


Fim de tarde. Zé gostava do frio, gostava de pensar que estava em algum país da Europa, que seu café era em Paris, tinha até colocado um poster da torre Eifell, meio rasgado nas beiradas, na parede ao lado do balcão. Sentia-se bem nos seus devaneios enquanto limpava as mesas.
Uma mulher madura se aproxima, sorri sincera e pede um café. Logo depois, quem ela estava esperando chega andando apressado e senta-se ao seu lado. Dava para notar que era bem mais jovem que ela. Terno sóbrio, gravata discreta, sapato de cromo alemão. Também pede um café. Curto, por favor.

- Você não mudou... -  diz ele.
- Dez anos? Ou mais? - diz ela, sem sequer ousar olhar nos olhos dele com medo de morrer envenenada.

Um abraço cerimonioso, quase infantil, mãos frias e suadas, coração marcando um compasso. Começam a atropelar os assuntos como se a última conversa tivesse sido ontem e as horas vão passando. Tudo passa. As afinidades ficam. Havia um querer bem. As memórias, fotografadas de ângulos diferentes, desfilavam entre eles como tiras de celuloide de um antigo roteiro.

Algumas horas antes…

Ela está pronta para sair e, como sempre, anda pela casa feito barata tonta, certificando-se de que não esqueceu de nada. Revira a bolsa, pega a chave de casa com uma mão e, com a outra, liga o celular. Mais uma olhadinha no espelho do lavabo e abre a porta para chamar o elevador. O telefone toca e uma voz familiar pergunta quem fala. Ela responde hesitante e ele se identifica. Silêncio.

Ela entra, deixa cair o corpo na poltrona, larga a bolsa no chão e continua a conversa com voz contida, disfarçando a emoção. O estômago arde, aperta e regurgita uma mágoa há muito ruminada. Dez anos e a certeza de que um dia isso iria acontecer.  Marcam um encontro para o final da tarde, será que foi uma boa ideia? Estava atrasada, pensaria a respeito a caminho do escritório.

Passa o dia sem nem um pingo de concentração fala ao telefone, responde e-mails, participa de uma longa reunião, olha no relógio, não quer almoçar. Toma água, desce até a calçada para fumar um cigarro, finge que trabalha mais um pouco e vai ao encontro de um fantasma, de alguém que ela duvidou que um dia tivesse existido. Aqui jazz um amor de adolescente.


Não sente o chão sob seus pés. Será que eu estou bem?

17 novembro 2015

Frequentadora assídua

Todos os dias, lá vinha ela, logo cedo antes de ir para a faculdade, depois voltava no meio da manhã na hora do intervalo, e mais uma vez antes de ir para casa. Parecia uma anoréxica, um fantasma. Zé até gostava dela, achava estranho porque pedia café duplo, forte, sem açúcar. Sempre segurando livros, colocando o cabelo para atrás da orelha e ajeitando os óculos, fungava. Não gostava de conversar, suas mãos tremiam ao segurar a xícara, se batesse um vento forte ela saía voando. Um dia, assim sem mais nem menos, comentou que a família não gostava dela, que eram uns idiotas e que se pudesse os mataria, um por um, lentamente. Mas que, pensando bem, não seria capaz de crimes perfeitos, daria muito trabalho se livrar dos corpos. Pensou em suicídio,  causaria mais impacto e eles se sentiriam culpados.

Contam que certa noite perambulava pela casa, feito assombração, pálida, descabelada, de camisolão de cambraia e pés no chão. Pupilas dilatadas, coração disparado por overdose de cafeína, não encontrava o sono, a agonia lhe corroía o peito.
Desceu as escadas no escuro sentindo a madeira velha dos degraus rangerem a seus pés. Parou no meio da sala e ficou olhando a luz da rua a entrar pelo janelão envidraçado e fazer listas no tapete. A noite tornava tudo mais belo, gostava do silêncio, daquele cheiro de dama da noite que vinha do jardim. Ficou ali, pensando. Olhou suas mãos, tocou seu rosto, cruzou os braços em torno de si mesma num abraço solitário, começou a chorar em silêncio para não acordar o resto da família. Família? Não.Estranhos sob o mesmo teto, uma gente esquisita que não fazia a menor ideia de quem ela era. Neuróticos, não perdiam a oportunidade de humilhá-la!
Malditos! Um dia ainda iria se vingar! Poria fogo na casa, envenenaria a comida, cuspiria no doce de abóbora. Mais uns dias e teria o prazer de riscar de ponta a ponta o carro novo do pai, picar a jaqueta de couro da mãe. Não. Picar não, não seria preciso: cortaria um pedacinho bem no meio das costas, derrubaria um vidro inteiro de esmalte importado na manga, ou quebraria o salto do Christian Louboutin legítimo. Poria um anúncio de garota de programa no jornal, com o celular e o e-mail da sua irmã. Publicaria na Internet aquela foto de seu irmão pelado que ela um dia descobriu no meio dos livros, enquanto fuçava seu quarto às escondidas.
Sentia-se poderosa enquanto sonhava com sua doce vingança. Foi até a cozinha e voltou com uma vela acesa, um bloco e uma caneta bic. Sentou-se na beirada da cadeira da sala de jantar e começou a escrever. A vela foi se consumindo, a chama aumentando e ela, lá... absorta, escrevendo... Gritou quando sentiu algo macio passando sobre seus pés e subindo pelas suas pernas brancas que nunca tinham sido depiladas.
- Um rato! Um rato! Um rato! - gritava correndo em círculos enquanto os malditos desciam a escada correndo para ver o que estava acontecendo.
O irmão conseguiu agarrar o hamster que havia fugido da gaiola, a irmã reclamou bastante e subiu a escada, os pais ficaram em choque, aparvalhados. Nem foram atrás da menina quando ela saiu correndo pela rua.  

Um dia, um casal passou em frente ao café. O homem perguntou pela frequentadora assídua enquanto a mulher torcia um lenço que tinha nas mãos.  Zé teve de dizer que ela nunca mais voltou.


10 novembro 2015

O gringo


Sexta-feira, fim de tarde, todo mundo em clima de fim de ano, comemorando a chegada do décimo terceiro. Várias mesas do café estavam ocupadas com o pessoal que trabalha na região e que nessa época do ano finge se divertir com o sorteio do amigo secreto. ninguém aguenta mais. Aêêê... Meu amigo não é amigo.... é aaamiiigaaa!

Apenas uma mesa estava ocupada por uma pessoa só. Era um cara grisalho e de barba que tomava cerveja observando. Zé achou que ele era gringo, que tinha cara de sangue bom, aproximou-se e puxou conversa.

- How are you? – disse Zé todo orgulhoso.
- Tudo bem, obrigado – respondeu o homem quase sem sotaque.

Era gringo mesmo, da Pensilvânia, antropólogo. Apesar do sorriso amigável, estava com os olhos cheios de lágrimas e foi logo dizendo, na lata, que estava muito triste. Zé, solidário, perguntou por que e ouviu atento a história, se esquecendo um pouco dos outros fregueses.

O antropólogo havia morado na Bahia anteriormente, casou-se com uma baiana e depois que seu filho nasceu voltou com a família aos Estados Unidos. Custaram a se ambientar, começaram as brigas, a separação aconteceu, o tempo passou. Mais tarde, resolveu morar num veleiro, coisa de gringo, e se aventurar. Adorava saber que poderia navegar para onde quisesse em sua casa flutuante e começou pelo Golfo do México, depois pelas águas do Caribe. A viagem dos sonhos durou 45 dias desde a Flórida até Paraty.

Deu tudo certo, ele foi ficando por lá. Estava feliz, no paraíso. O melhor, dizia ele, era acordar a cada dia com um cenário diferente, proporcionado pelo movimento da maresia. Às vezes, abria os olhos e via as montanhas, outras, o contorno da cidade histórica e assim passavam os dias de sossego. À noite, tocava blues num barzinho e depois dormia olhando a lua. Quer vida melhor? Just perfect.

      Por aqueles dias, uma tempestade tropical e a fatalidade: um raio atingiu o mastro de metal no meio da noite, destruiu o barco. Tudo estava perdido. Presente, passado, futuro, sua casa e seus pertences desapareceram depois de um trovão! Ele perdera tudo o que tinha nessa vida, estava apenas com a roupa do corpo, sandália havaiana e um celular pré-pago. Sem casa, sem esperança, sem saber para onde ir. Em Sampa, na casa de velhos amigos, tentava se recuperar.

Zé, ficou chateado, se emocionou, até. Colocou a mão no ombro do novo amigo e depois saiu.  Voltou com mais uma cerveja, uma porção de pão de queijo e disse: Fique aqui o tempo que quiser. Hoje é tudo por conta da casa!



09 novembro 2015

As duas

Depois do movimento grande na hora do almoço, o café geralmente ficava vazio, principalmente na segunda-feira. Zé, entediado, tomava seu primeiro café do dia. Uma bela executiva de seus trinta e poucos anos chamou sua atenção quando virou a esquina e caminhou decidida em direção às mesinhas de ferro. Ela era um monumento, cara de ricona. Poderosa, pensou ele, sem tirar os olhos do rosto angelical e dos cabelos longos e bem cuidados, com reflexos dourados. Achou que ela era turbinada. E daí? Era gostosa pra caramba.

A moça tirou um lenço de papel da bolsa, passou no assento de uma das cadeiras, colocou seus pertences na outra, olhou o relógio, chamou o Zé e pediu com voz de veludo:

- Um gim tônica, por favor.
- Sinto muito. Não temos gim tônica -  se desculpou o bom homem - Pode            ser uma cerveja bem gelada?
- Então me traz uma água e um café, pode ser?

Enquanto preparava o pedido, Zé notou que outra mulher acabara de entrar e de se dirigir rapidamente à mesa da primeira. Bonitona, porém, era outro tipo: magra, alta, cabelos bem cortados e de um tom avermelhado. Vestia um jeans justo, camisa branca e carregava uma mochila que, pelo tamanho e formato, deveria conter um notebook e tudo mais que uma pessoa possa precisar numa ilha deserta. Quando Zé trouxe o café para a gostosa, a recém-chegada pediu uma cerveja e um pacote de salgadinho. O café vazio e as bonitonas , provocando a imaginação do nosso amigo que não perdia um movimento. Tentou disfarçar o olhar insistente, mas elas não estavam nem aí com ele.

A executiva olhava nos olhos da outra, que correspondia. Bebericou a água e passou a língua nos lábios, num gesto sensual. Aproximou-se, segurou primeiro uma das mãos da altona e depois a outra, sem desviar o olhar. Para tortura de Zé, falavam baixinho, trocavam confidências e carinhos discretos. Ficaram ali um tempo, pagaram a conta, pediram um taxi e saíram de mãos dadas. Deixaram uma gorda gorjeta.

- Se elas topassem...- resmungou Zé suspirando.

E foi logo atender uma turma que acabava de ocupar a mesa maior.



07 novembro 2015

Llíngua de prego

Agora você está entrando no Café do Zé.
Fique à vontade, puxe uma cadeira.
Boas histórias ordinárias o aguardam.

- Eu quero um café, expresso, meio carioca. Meio carioca é assim: com um pouquinho só de água quente. Dá para colocar espuma de leite? O leite é integral? Ah, então deixa. Pode ser sem espuma. Tem açúcar mascavo? Ótimo! Por favor, quero o café servido em xícara seca, se você não se importa. Detesto xícara molhada, muda o gosto do café, sabe? Você pode levar até a mesa? Estou esperando uma pessoa. Dá para limpar essa mesa aqui? Está suja. Obrigado.

O homem elegante e impecavelmente vestido puxa a cadeira, senta-se e abre o jornal com cuidado. Mal começa a ler e olha para cima, depois para os lados. Quando Zé vem com o café, ele pede para mudar de mesa porque ali onde estava havia uma corrente de vento. Muda-se para um lugar mais reservado perto do balcão e diz que a música estava atrapalhando sua leitura. Zé, tentando ser gentil, diz que vai tomar providências e resmunga qualquer coisa ao entrar para a cozinha.

O executivo toma seu café devagar. Pede uma água mineral, garrafa pequena, sem gás, com uma pedra de gelo, suco de limão à parte e um copo seco, por favor. Detesta copo molhado. Reclama que agora a música estava praticamente inaudível. Sim, dava para aumentar o som, resmunga Zé.

Quinze minutos depois, entra uma moça de cabelos roxos espetados, unhas azuis, umas vinte argolas de metal em cada orelha e várias roupas pretas sobrepostas. Vai direto à mesa do homem bem vestido e o beija. Na boca. Demoradamente. Senta-se ao lado dele e sorri com cara de alcova. Ele disfarça. Ela contorna todas as reentrâncias da orelha esquerda dele com a língua de prego. Depois, segura seu rosto com as duas mãos e repete o gesto na orelha direita. Ele abre os olhos e sorri totalmente enfeitiçado pelos olhos verdes da exótica...


- Mais um café, expresso, meio carioca.