07 abril 2016
05 abril 2016
Tarde de autógrafos do livro E-contos passageiros
E-contos passageiros – Editora Livrus 2016
Tarde de autógrafos do livro
Sábado 16 de abril de 2016-04-05
Livraria Martins Fontes – Av. Paulista 509 – São
Paulo
E-contos Passageiros
divide os textos em cinco categorias: da literatura, da cidade, da morte, da
vida e do amor.
Podem ser lidos nos smartphones ou tablets por aqueles que não desgrudam dos
eletrônicos. Por isso o formato digital.
Mas, uma edição impressa também
acompanha o projeto para os que, como a autora, gostam de ler no papel.
21 fevereiro 2016
Saco cheio
Zé
acorda de saco cheio da vida. Não quer nada com nada. Todo dia a mesma rotina
besta, levantar, tirar o pano da gaiola, alimentar e dar água aquele pequeno
ser aprisionado, tomar, ele próprio, uma chuveirada fria, barbear-se,
vestir-se, caminhar até o café. Por quê? Para quê?
Em
ritmo lento, prossegue o ritual. Desenrola a porta de ferro, liga a máquina,
passa pano no balcão, depois nas mesinhas. A cidade está parada. Ele olha no
relógio para ver se não havia se enganado no horário. Não, eram oito horas
mesmo. Dá uma varrida na calçada, junta o lixo na pazinha, joga no latão.
Prepara
um café e senta-se como se fosse um freguês. Não passa ninguém na rua, que
saco! Fica ali um pouco, tamborilando os dedos na mesa, balançando o pé. Resolve
então assumir o mau humor. Levanta, lava a xícara que usou, recolhe as
mesinhas, baixa a porta de ferro, pendura uma folha de papel com um volto já
mal escrito, põe a chave e no bolso e sai andando. Só depois
de um tempo é que começa a apreciar o cenário. Percebe os detalhes dos prédios,
os desenhos das grades de ferro, a beleza das árvores. Começa a prestar atenção
nos rostos das pessoas, um sem fim de dessemelhanças andando depressa.
Zé não
havia reparado o quanto as calçadas são esburacadas. Continua sem rumo e se
sente outra pessoa. Repara na loja de telefonia, no fruteiro, na banca de jornal,
no café... Sentiu o cheiro e parou. Era um lugarzinho fuleiro, parecido com o
seu. Por que não? Entrou. Procurou uma mesa e pediu uma média. Era bom ser
freguês para variar. O relógio cuco marcou onze horas e Zé reforçou o pedido:
uma média, um pão na chapa e um pedaço de bolo. Apreciou ser servido. Sentia-se
bem agora. Procurando o banheiro, tentou abrir uma porta meio emperrrada, que
aparentemente dava em um beco, atrás do café. Forçou para cima, para
baixo, sacudiu, deu um murro acima do trinco. Por fim, bem devagar, com a
certeza de que conseguiria, suspendeu o trinco e virou. A porta abriu. Não era
o banheiro, mas mesmo assim ele entrou...
09 fevereiro 2016
Banal
Um
bando de jovens estudantes se aproxima ruidosamente. Zé detesta esses meninos
de 13 ou 14 anos, meio sujos, barulhentos, os pré-adolescentes, aborrecentes.
Detesta. Só fazem barulho, ainda não sabem apreciar um bom café, consomem
refrigerantes e pisam nas latinhas. Os feromônios efervescentes provocam
atitudes um tanto animalescas: urros, pulos desajeitados gargalhadas e
gritinhos histéricos. Arrastam as cadeiras, atiram as mochilas no chão,
sentam-se de perna aberta, chutam-se e empurram-se de leve. A conversa é
desconexa, mas não importa, cada um fala para si mesmo como se o resto do mundo
não existisse e os insultos jorram de suas bocas.
Os
seres ocupam duas mesas, jogam livros, agasalhos e mochilas, tudo no chão,
pedem coca-cola, uma ou duas meninas água mineral. Pão de queijo? Alguém? Não,
agora não. Um deles arrota alto provocando mais risos, o outro enfia na boca
duas bolas de chiclete e limpa o cuspe que escorre na manga do moleton cinco ou
seis números maior que o dele e com as beiradas dos punhos totalmente
encardidas.
Ficam
ali, cabulando aula e se aquecendo ao fraco sol da manhã.
Uma
garota de cabelo cuidadosamente despenteado, graças a provavelmente um pote de
gel, usa camisa de flanela amarrada na cintura e regata preta. Quando ela se
baixa para amarrar o cadarço da bota de soldado perde o equilíbrio e cai em
cima da amiga que está sentada e as duas vão parar no chão. Todos riem muito
mais alto do que acham graça e as garotas não conseguem se levantar de tanto
rir. Abraçam-se. Um dos garotos estende as duas mãos e puxa as duas para cima
com força e elas conseguem se erguer apesar do ataque de riso. Uma delas dá um
selinho no rapaz que a ajudou e faz uma cara de criancinha. A outra a imita,
provocando. Ele se anima, passa o braço em torno do pescoço delas, uma de cada
lado e as beija com vontade. Em seguida as duas se beijam lascivamente.
De
repente, a conversa para e as risadas também. Então, começa uma degustação
generalizada de bocas e línguas, uma mistura de afeto e erotismo grupal: homem
com homem, mulher com mulher, faca sem ponta, galinha sem pé. Fica um clima, até que alguém diz:
- Bóra
galera!
Atiram
um bolo de dinheiro amassado em cima da mesa, catam suas coisas e vão embora.
31 janeiro 2016
Mercado Financeiro
Fim de tarde normal no café do Zé. Muitos fregueses faziam hora lá por causa do trânsito. Ás vezes passavam, com pressa, engoliam um cafezinho e iam embora antes do rush, outras vezes ficavam por ali, esperando o movimento dos carros diminuir para depois ir para casa.
Pensando nisso, Zé achou melhor ter dois tipos de café mais conhecidos no Brasil, assim teria assunto como os clientes, mostraria conhecimento: o arábica, que ele pessoalmente preferia, por ser mais requintado, originário do oriente, cultivado em regiões mais altas e grãos de cor esverdeada; e o robusta, originário da África, sabor típico, baixa acidez e teor mais alto de cafeína. Oferecia também café orgânico e adorava contar que visitou a fazenda e escolheu aquele café porque era um café feliz, crescia solto no meio de outras árvores.
Nos lugares públicos, sempre tem alguém que fala sem parar, muito mais alto que os demais, que chama mais atenção, até pelo timbre de voz ou pela atitude. O homem de terno claro e sapato marrom era assim: não precisava de microfone. Com as pernas espalhadas, apontava a própria têmpora com o indicador e dizia:
- Os caras enlouqueceram. Tão falando que HSBC vai congelar os salários e as novas contratações em 2016, os funcion[ários vão receber e-mail com as medidas a de redução de custos, tudo para aumentar a rentabilidade dos acionistas e está levando adiante planos para conseguir uma economia anual de até 5 billhões de dólares até 2017. Bancos da Europa querem eliminar quase um e cada cinco postos de trabalho e reduzir investimentos em um terço, isso seria uma forma de responder ao fraco crescimento econômico e regulamentações globais mais rígidas. A economia está desacelerando muito e a gente como é que fica? A Dilma, o dólar do jeito que está, essa corrupção descarada, cada dia uma coisa, e lá no banco a coisa está ficando insustentável. Comer sanduíche em frente a três telas de computador... Não dá! Trabalhar dezoito horas por dia virou rotina, cara. O celular não pára de tocar, quanto mais tecnologia mais exigem da gente. Diz que o pessoal da bolsa só falta se comer vivo, trancam os caras no banheiro, se chutam durante o pregão, sacaneam geral. Sabe o que o Medeiros disse? Você lembra dele, né? Meio antigão, tem quatro filhos, a mulher não trabalha... Sabe o que ele falou ontem? Você não vai acreditar. O cara chegou na minha sala babando, falando alto, olho arregalado, logo ele que é tranqüilo, veio contar que cabeças vão rolar. Estava apavorado o coitado. Os caras não querem nem…
- Amore, eu estou sem calcinha – disse a mulher que estava com ele.
- ...saber. Estava tão vermelho, com as veias saltando da testa que parecia que ia ter um inf.... Quê?
- Hum...hum...Eu estou sem calcinha – repetiu ela remexendo o café.
- Sem nada, só com esse vestidinho. Quer ver?
Abriu a bolsa, tirou de dentro um pedacinho de renda preta e jogou na mesa.
- Ficou louca? Guarda isso já! O que foi que deu em você? Está todo mundo olhando, estamos na rua, sua doida!
- Olhando o quê, fofo? Ninguém sabe. Quis fazer uma surpresinha para você relaxar um pouco. Você anda tão chato...
- Vamos embora. Agora mesmo. Não quero que vejam você assim – disse ele pegando a rendinha e enfiando rapidamente no bolso do paletó.
- Já disse que ninguém sabe. Agora, se eu descruzar a perna assim...
- Pára com isso!
- Eu só queria provocar você, não precisa ficar nervoso, amore. Brincadeirinha...
- Quem disse que eu estou nervoso? Estou louco por você, gata, vem cá!
- Ai! Não me puxa. Deixa que eu levanto sozinha. Onde você quer ir?
- No banheiro, vamos. Você queria provocar não queria? Conseguiu.
- No de homem ou no de mulher? Ai, cuidado, não me aperta seu bruto!
- Qualquer um. Entra aí, vai!
25 janeiro 2016
Depressão
Desanimada,
ela abre a janela para ver como está o dia. Nem se lembra que é domingo
novamente, mais um detestável domingo de sol e de solidão. Arrastando os pés
vai até a cozinha, mecanicamente toma um copo de água, meia dúzia de
comprimidos. Pega o jornal na porta, joga em cima da mesinha e liga a tevê. O
telefone toca, mas ela não atende, não quer falar com ninguém, não quer ver
ninguém. Com os olhos fixos na tela, não presta atenção na veemente pregação do
pastor evangélico e nos fiéis que a cada final de frase dizem aleluia! Precisava comer alguma coisa. Olha a geladeira vazia, decide sair para tomar o café da manhã perto de sua casa. Troca de
roupa, lava o rosto, escova os dentes, penteia o cabelo de qualquer jeito. Quando se olha no
espelho desanima; está branca, com olheiras, parecendo dez anos mais velha. Foda-se.
Sabia que ninguém iria olhar para ela, mesmo. Pega o jornal, bate a porta e
sai.
O dia
estava agradável, caminha até o café do Zé, olha para o céu e puxa a cadeira de
uma das mesinhas na calçada. Abre o jornal na página de óbitos, como de
costume, passa os olhos por todos os anúncios tentando achar algum nome
conhecido.
Pensa
no seu próprio funeral. Quer ser cremada, depois de doar o que for aproveitável
de sua carcaça. Não haverá velório, mas uma cerimônia simples antes da
cremação. No caixão, rosas ou orquídeas, nada de flores fedidas e nem velas
artificiais, aquelas de plástico com uma ridícula lampadazinha de luz
inconveniente. Se alguém quiser dizer algumas palavras, que sejam verdadeiras e
se houver música, que sejam canções alegres. Padre? Nem pensar. Eles nem
conhecem o defunto, dizem sempre as mesmas coisas sem sentimento e vêm sempre
de paletó surrado e camisa puída. Então, começou a visualizar os detalhes, as
pessoas chegando, olhando seu rosto e mãos de cera no caixão. Quem será que iria
lhe prestar a última homenagem e chorar a sua morte? E depois? Depois, nada.
Ninguém sabe nem nunca voltou para contar. A luz no fim do túnel não seria a
projeção dos neurônios se desligando? Ou há um portal que recebe as almas? O
barqueiro da morte? Um anjo de asas douradas? Não importa.
O aroma
do café fez com que voltasse à vida. Aqueles grãos torrados eram capazes de
gerar uma bebida maravilhosa, quente, estimulante, sensual...
Tomou o primeiro
gole de olhos fechados, depois voltou ao obituário no jornal.
18 janeiro 2016
Enchente
Em
frente ao café, do outro lado da rua havia um ponto de ônibus bem na porta da
oficina de um tapeceiro, coitado. Era um inferno cada vez que ele precisava
entrar ou sair com sua caminhonete velha, ora carregada com poltronas sujas,
ora com sofás renovados, cobertos com plástico-bolha. Como o ponto não tinha
cobertura de alumínio, o sol batia sem piedade e o povo se amontoava quase
dentro da oficina, para poder ficar na sombra. Em dia de chuva era pior.
Próximos
ao ponto, ficava um vendedor de balas e outras porcarias, uma senhora com
bolos, enormes pães de queijo ocos e várias térmicas de café, aqueles vendedores de
chicletes e chocolates que ficam fazendo discurso dentro do ônibus. Boa tarde
pessoal. Desculpe atrapalhar sua viagem, pessoal. Um deles, vestido de palhaço.
À tarde, churrasquinho de gato com farinha e tudo. A calçada esburacada ficava
cheia de lixo, descartáveis, plástico, bitucas, cusparadas, um nojo. Um dia,
chamaram um cara para retocar o cimento e o folgado cimentou por cima da
sujeira. Na primeira chuva saiu todo o cimento, não adiantou nada.
Zé
olhava e pensava nas enchentes que vira no noticiário na noite anterior. Nisso,
um bêbado dá sinal para o ônibus. A porta se abre, ele agarra o corrimão, atira
a lata de cerveja no meio da rua e sobe. O cobrador aproveita e arremessa um
monte de papel picado pela janela.Um passageiro cospe pela janela e um garotinho joga papel de bolacha pela janela seguinte.
A
vizinha do tapeceiro resolve lavar o quintal, manda um balde cheio, e a água com
sabão escorre pela calçada. As pessoas paradas esperando o ônibus se afastam
erguendo um pé de cada vez. Reclamam, mas a vizinha nem liga e esfrega o chão
com a vassoura.
Zé
olhava e pensava que era melhor ficar lavando xícara o inteiro do que sujar a
rua daquele jeito. Gente porca. Depois reclamam das enchentes.
10 janeiro 2016
Cascuda...
… e asquerosa, lá estava ela parada no cano da
torneira da pia. Era grande, repugnante, a desgraçada, com antenas duas vezes
seu tamanho tateando o cano enferrujado. Suas asas pardas se entreabriam e
fechavam em um movimento lento e nojento, parecia que ia voar. Zé pegou a
vassoura, escorregou o pé para fora do chinelo, abaixou-se e o empunhou como
uma segunda arma de defesa.
E a
barata lá, só mexendo as antenas. Zé optou pelo chinelo. Desferiu um golpe
certeiro e a bicha caiu de costas na pia. Ficou imóvel por uns segundos, mas
depois começou a mexer as pernas tentando se desvirar. Conseguiu! A chinelada
não fez efeito e ela saiu lépida entrando atrás do quadrinho do Sagrado Coração
de Jesus.
Zé
largou a vassoura e foi procurar um inseticida. Derrubou tudo o que estava na
prateleira, pegou o aerosol e mirou no quadro, apertando o pino como quem
aperta o gatilho de uma arma assassina. O líquido formou uma névoa e depois
escorreu pelo quadro.
- Agora
eu matei! – disse ele.
Continuou
sua rotina, limpou a sujeira, guardou a bagunça, lavou bem as mãos e disse bom
dia a um freguês que acabava de entrar. Cafezinho carioca com espuma de leite,
um copo de água sem gelo e um pão de queijo. Pão de queijo não tinha, foi pão
de batata. Começaram a conversar sobre o calor, o trânsito, nada de mais. O
sujeito era amável e Zé, que estava gostando do papo, serviu a água e em
seguida colocou no balcão o café e o pão em um pratinho. O freguês começou a
fazer perguntas sobre a coleção de xícaras, Zé se distraiu e quando bateu o olho no balcão viu a
baratona em cima do pão de batata. Ficou sem ação. O freguês, que
estava de costas, continuou falando. E agora? Cadê a vassoura? Estava longe. E
o chinelo? Era a sua chance. Sorrindo fez uma espécie de reverência, pegou o
chinelo e tacou na barata por cima do ombro do freguês. Ela fugiu de novo.
Filhadaputa! E agora ele havia ficado mal com o simpático cliente que provavelmente
jamais voltaria a café.
E não é
que o Zé estava enganado? O cara era biólogo, não estava nem aí com a dita
cuja.
03 janeiro 2016
Moleque
Chovia
a potes. Era uma daquelas tardes de janeiro quando a chuva, em vez de
refrescar, levanta um vapor do cimento quente. O café estava vazio e Zé
preenchia várias cartelinhas da loto. O pequeno toldo de lona enchia de água e criava
um chuveiro grosso no canto direito da fachada. Ele ficou preocupado, com medo
que a armação desabasse. Pegou uma vassoura e cutucou o tecido, eliminando a
água pelos lados da cobertura. Pronto. Deveria funcionar por um tempo.
A chuva
continuava e o toldo tornava a encher. Quando Zé ia repetir a operação lá estava
um moleque debaixo de onde caía mais água. Devia ter uns 10 anos, vestia uma
camiseta escura onde se lia em letras grandes University of Miami. Por estar ensopada, quase chegava ao chão e o
garoto lá, pulando, de boca aberta, tomando água da chuva.
Zé
ficou olhando e riu. Ele mesmo tinha vontade de sair na chuva, chutar poças d’
água e brincar na enxurrada. Mandou o garoto sair duas vezes e na terceira vez o
menino respondeu:
- Eu me
chamo Denílson e só tô tomando chuva, moço.
- Entra
aí, Denilson, sai da chuva – disse Zé complacente.
Pingando
e feliz da vida, o garoto aceitou. Tirou a camiseta e torceu para o lado da
calçada, depois sacudiu bem e torceu de novo. Espremeu as laterais do shorts de
nylon e passou a mão no cabelo molhado.
- Posso
ir no banheiro? Só pra lavar a mão.
- Vai
lá, mas não faz bagunça, tá?
Saiu do
banheiro com cheiro de sabão líquido. Zé achou que ele tomou banho na pia,
ficou com dó. Preparou um café com leite bem quente, pão com manteiga e puxou
conversa. Denílson estudava na escola pública do bairro, trabalhava no
mercadinho fazendo entregas, ajudava a mãe e jogava no timinho da rua. Dava
duro, fazia o dever, mas naquele dia resolveu cabular.
Era uma
daquelas tardes abafadas de janeiro e Denílson era apenas uma criança.
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