16 julho 2018

QUANTAS COPAS DO MUNDO JÁ ASSISTI? por sandra schamas

Muitas? Sim.
Inesquecíveis?
Talvez as de 1994 e 1998, tempo em que eu morava fora do país e era um tanto ufanista. Agora, em  2018, fazendo um esforço para não ser  crítica demais, o que é típico dos meus 60+, resolvi assistir aos jogos do Brasil em casa, sozinha, para não ter interferências e nem ouvir comentários. E assim foi. Torci, é claro, mas parecia que alguma coisa estava faltando.


Depois de conversar quase uma hora com um amigo que entende de futebol, vi que não estou tão velha e nem tão louca assim. O futebol mudou muito e eu  ainda estava estagnada naquela ideia do futebol romântico de priscas eras. Esperava lances mirabolantes o tempo todo e não conseguia decidir se o Brasil  estava jogando bem ou mal. Tudo me pareceu preso, enlatado e sem graça. Teria tirado Neymar em algum segundo tempo, na tentativa de que seu substituto viesse com um elemento surpresa e o Jr. parasse de cair. Foi então que entendi que a torcida quer ver o Neymar, todos querem ver seu ídolo e cada seleção tem o seu. O futebol atual mais parece  jogo de xadrez: tudo muito estudado, planejado, cauteloso. Os brasileiros não surpreendem mais e o  mundo aprendeu a jogar bola, principalmente a Europa. Agora é de igual para igual. Está certo. Já fomos campeões cinco vezes, está na hora de outros também ganharem.

Eu assistia aos jogos sem ter a mínima ideia de quem eram nossos jogadores. Nunca tinha visto aqueles meninos,  só conhecia o Neymar. Depois o Marcelo, com aquele cabeleira. Até os cabelos mudaram, os uniformes cheios de tecnologia, as chuteiras coloridas e futuristas. Fica bonito no campo. As seleções são formadas por jogadores de toda parte, uma miscelânea; ninguém mais joga pelo seu país de origem, tem até brasileiro naturalizado russo! O Brasil é uma espécie de viveiro, onde os meninos com talento são escolhidos e quando fazem 18 anos são comprados. São moldados para serem super profissionais, muito bem treinados a fazer o que o  mandam e jogam por dinheiro.  Faz sentido. Me parece que hoje tudo é assim me$mo: o consumo é seguido como religião, meia dúzia manda e os demais obedecem, feito um rebanho de carneirinhos alegrinhos, saltitando por caminhos já traçados  -- todos de fone no ouvido e celular na mão.

Os torcedores, em geral, são ansiosos, se confundem, ficam vendo no Youtube os melhores lances e esperam dos jogadores o impossível. Estes, por sua vez,  podem jogar de modo espetacular, ou não. Acontece. Não são máquinas, ainda. O Brasil para, ninguém trabalha, muitos gastam o que não podem para ir assistir a copa ao vivo, levam a família inteira e acham que é obrigação da seleção brasileira ganhar o tempo todo.

De olho na tela, observando tudo meio desconfiada, pensei que seu aceitasse o que estava vendo, sem criticar, poderia torcer de maneira mais consciente e aproveitar melhor o momento.

Antigamente era melhor? Não sei.  Era diferente, mais simples, mais inocente, espontâneo. Hoje temos muitos recursos, simulação por imagem digital, tecnologia, estatísticas, especificidade nos treinos etc. Os jogadores correm muito mais do que corriam nos anos 1970, têm maior desempenho e técnica. Até goleiros têm muito mais agilidade, apesar de serem mais altos, não deixam passar nada.. Houve evolução.

Tenho saudades das copas com os super craques cheios de garra, calção curto e meia de algodão. Porém, 'relógio que atrasa não adianta'. Não adianta nada ficar remoendo o passado. Fala-se muito em aceitar as diferenças justamente porque fazer diferente, pensar diferente, não é fácil.  Essa história de que 'no meu tempo era melhor' é muito relativa.

Enfim, a fila anda, as coisas mudam e a gente tem que aprender a mudar com elas. Foram jogos bonitos, os finalistas deram o sangue e, se a gente encarar o esporte com mente aberta, pode curtir belos espetáculos tendo como protagonistas atletas especiais.

28 junho 2018

CHRONOS E KAIRÓS - por Sandra Schamas

Sobre o tempo.
No discurso de seu aniversário de 80 anos, o professor, mestre e doutor Rubens Murillio Trevisan descreveu lindamente o conceito de Chronos e Kairós. Com seus profundos conhecimentos de filosofia e teologia, nos encantou com sua voz amorosa e confiante e me fez entender que Chronos é o tempo dos homens, do relógio, das horas convencionais, e Kairós é o tempo oportuno, o tempo de Deus. 
Antes do catolicismo,  a mitologia já personificava Chronos como o senhor do tempo, aquele que  devora enquanto  gera. Devora os próprios filhos, os seres e o destino.

Kairós era representado por um jovem nu com asas nos ombros e nos tornozelos, tendo nas mãos uma balança, símbolo do equilíbrio e da justiça: é veloz, mas não passa da medida.

Sempre que estou concentrada, em alguma atividade que me realiza, completa e nutre, me imagino voando com Kairós. Eu poderia dizer que essa sensação de estar no aqui e agora define o que é  felicidade, total conexão com o universo interior e exterior.

Ao pensar nos meus 60+, volto para as décadas anteriores. Sem falar no primeiros anos da infância, quando o tempo era de Kairós, me dou conta que, quanto mais entrava na idade adulta, mais os anos eram devorados por Chronos. Ás vezes, quando o deus implacável e faminto descansava, o jovem com asas tinha vez. Porém,com o passar dos anos,  com as exigências da sociedade, me senti totalmente escrava de Chronos.

Recentemente senti a necessidade de repensar ao mistério davida e o mistério da morte. Quantos anos mais vou viver? Não sei, ninguém sabe. Então, por que não deixar Chronos interferir apenas no que é indispensável e fazer uma parceira com Kairós, pedindo emprestado suas asas e sua balança?  Qual é o tempo oportuno? Qual é o tempo de Deus, o que me faz voar em outra dimensão?

Cada um tem seu próprio conceito de qualidade de vida, de bem estar, de plenitude e todos os clichês sobre o envelhecimento, tão em alta nesse século. Quanto a mim, fazendo as contas, sei já vivi mais da metade do suposto tempo nessa vida, sei que alimentei muito Chronos, mesmo assim ele continua faminto, e que Kairós está à minha disposição, vou tentar emprestar as asas do segundo.

Dentro do pensamento filosófico/mitológico de que temos esse tempo oportuno, ou tempo de Deus, quero, no mínimo ser útil,  e mergulhar no que me interessa.

O envelhecimento em si, a plenitude, a finitude, a literatura do mundo inteiro, o que as pessoas andam fazendo de bom por aí, as tendências minimalistas e de reaproveitamento, mais o profundo interesse em ajudar o outro são, nesse momento, os veículos que me fazem voar.

26 junho 2018

E-CONTOS PASSAGEIROS - Sandra Schamas

E-Contos Passageiros de Sandra Schamas
por Ana Célia de Mendonça Goda Cunha

 Prefácio

Uma parada imperdível.

Vivemos em um mundo em mutação. Pessoas, as mais diversas e de todos os cantos, se conectam e desconectam a cada segundo. A sensação é de que o tempo agora passa mais rápido, de que ele nos escapa; talvez porque nunca antes tenhamos ficado tão plugados ao novo relógio: o celular. É nessa plataforma que o e-book da Sandra vem te encontrar.


Sandra Schamas escreveu os contos, as crônicas e as outras narrativas breves desta coletânea inspirada em personagens e situações reais, que ela conheceu enquanto se locomovia no transporte público de São Paulo nos últimos anos. “Observar as pessoas e ouvir suas histórias era meu descanso entre uma atividade e outra”, ela me disse. Como o flâneur da era impressionista é retratado pelo pincel agitado do pintor para revelar os novos contornos de seu tempo, Sandra veicula com habilitação uma surpreendente comitiva de personagens. Estes nos são entregues por narradores diferentes, apresentam sotaques de destinos vários, e estão vestidos com estilos que não seguem uma única moda. À moda de Sandra, enxergar o passageiro do lado com olhos novos é possível [ou a si mesmo]. Foi o que aconteceu aqui comigo.

Ana Célia de Mendonça Goda Cunha Editora, professora, escritora e revisora 0

25 junho 2018

SOLIDÃO BENFAZEJA por Sandra Schamas

Acabo de ver no jornal da manhã que nos Estados Unidos fizeram uma estatística com 20.000 americanos e criaram uma escala da solidão com pessoas de várias idades. Conforme a idade aumenta, o índice de solidão diminui.

Entre 18 e 22 anos 48,3 % sentem solidão:

Os mais jovens sentem a solidão da incompreensão, da dificuldade de estar com outros que pensem como ele e de achar que as pessoas não o conhecem como indivíduo, apesar do intenso uso das redes sociais

Com 72 anos ou mais 38,6% se sentem sós:

Os mais velhos se sentem mais próximos dos outros e sabem que têm pessoas com quem podem contar.

Os estudos dessa pesquisa relatam que a solidão e a saúde estão ligadas;

  • A solidão aumenta o estresse.
  • A atividade física e o sono diminuem a probabilidade de se sentir solidão.
  • Ter amigos, conviver com a família diminuem a sensação de se estar só.
  • Ocupar-se, sentir-se útil, ser o protagonista de sua vida diminuem a solidão.
  • Mas, o mais importante é buscar o equilíbrio.
Pessoalmente sinto que necessito estar só em certos momentos, preciso desse recolhimento, desse tempo comigo para recarregar minhas energias. Que sensação incrível é se jogar no sofá para ler um bom livro ou assistir uma série na TV, depois de um interminável almoço de família! Esse ninho acolhedor que é a família nos alimenta e nutre com vários sentimentos bons. Nutre tanto que precisamos um tempo para digerir.

Quando temos decisões a tomar, nos empenhamos em algum aprendizado que julgamos importante, quando nos divertimos com nossos pares e rimos de nossas dificuldades também precisamos de um tempo para nos recuperar. 

Felizmente nos 60 + temos tempo e maturidade para entender que, com calma e perseverança podemos usufruir dessa fase interessante da vida.

Equilíbrio é tudo de bom.

11 junho 2018

QUANTOS ANOS VOCÊ TEM? por Sandra Schamas

Filha e neta de duas italianas poderosas e muito  vaidosas, cresci achando que perguntar a idade de alguém, além de falta de educação, era um sacrilégio. Assim que percebi que não ia conseguir resposta para essa pergunta direta, resolvi mudar de estratégia. Comecei a perguntar a idade de outras pessoas da família, começando por meu pai que, já instruído, mudava de assunto. Assim, só fui saber a idade de minha mãe quando precisei mexer nos documentos dela, antes de uma grave cirurgia que precedeu sua morte. Mesmo assim, me sentia desconfortável.

Será que o número é tão importante? Acho que hoje em dia, sim. As revistas de fofoca não se cansam de dizer a idade dos famosos. Fulana (65) e fulano de tal ( 49) embarcam para Paris. Fulaninha (28) diz que ainda é cedo para ser mãe, mas que um dia vai realizar esse sonho. Beltrano (75) corre a Maratona de NY.

Acredito que esse tabu vem de um preconceito ocidental para com as pessoas mais velhas, que a partir de determinada idade ficavam à parte, ou se colocavam numa posição de recolhimento achando que não havia mais nada para fazer , muitas vezes se tornando  um estorvo para as famílias. O preconceito de idade também tem  a ver com a sexualidade e o período de reprodução. A menopausa, para as mulheres, que pode ser bem incômoda, e o medo da impotência que assombra os homens. Havia também um conceito interessante a respeito da  idade certa para se casar: a mulher deveria ser mais jovem que o marido. Existe até uma tradição popular no Oriente Médio em que, segundo alguns, a idade ideal da esposa  deve ser a metade da idade do marido +7. Então, se ele tem 30, ela deve ter 15+7= 22. Se ele tem 60, ela deve ter 37. Interessante. Nada disso é válido hoje em dia e as diversidades estão aí para serem defendidas.

Voltando à questão do envelhecer, muitos problemas que se referem à saúde e a aparência, a ciência pode resolver. Tratamentos de fertilidade, hormônios, Viagra, inseminação in vitro,  barriga de aluguel, mãe que empresta o útero para gerar o embrião da filha, isso sem falar na criopreservação de óvulos sêmen e embriões.  Além do incentivo à cultura ao corpo, promovido pela mídia, é possível se obter resultados milagrosos no campo da cirurgia plástica, lipoescultura,  próteses, rejuvenescimento das mãos, na aparência do rosto, dos cabelos e  dentes. Técnicas super inovadoras tornam realidade o sonho da fonte da juventude.

Então, por que será que as pessoas ainda não gostam de falar de idade?

Ontem, depois de um fim de semana cheio com família e amigos, as dores, até então dissimuladas por tantos sentimentos bons, acabaram se manifestando. Pensei, então: é tão bom estar por aqui. Que pena que o corpo envelhece. Que pena que quando a mente está a todo vapor, o autoconhecimento em plena forma, a experiência em plenitude, a vontade de viver a mil, o corpo começa a dar sinais de desgaste. Que pena!

Justo agora que posso fazer tantas coisas por mim mesma e pelos outros, tanto no âmbito familiar quanto no social mais amplo, tentando deixar um mundo mais justo para as futuras gerações,  meu corpo me avisa que não tenho mais tanto tempo?

Nessa fase da minha vida isso  me preocupa. Tenho a certeza de saber que um dia não estarei mais aqui e a incerteza de não saber quando isso vai acontecer. Enquanto isso, vou fazendo o melhor que posso. Como? Descobrindo belezuras da natureza escondidas nesta selva de pedra que é a cidade, apreciando as coisas mais simples, curtindo os amigos, olhando nos olhos dos desconhecidos e prestando atenção no que eles falam. Brigo com as parafernálias tecnológicas, mas gosto de aprender. É claro que nem sempre sou uma Poliana fazendo o jogo do contente, tal seria. Sempre que posso, procuro sempre habitar naquele lugar do meu coração que me diz que estar viva já é um presente. No presente.

24 maio 2018

EU ME REINVENTO, TU TE REINVENTAS, ELE SE REINVENTA...por Sandra Schamas

Enquanto os mais jovens - ainda bem que nem todos - dormem nos assentos destinados aos idosos, gestantes e pessoas com deficiências físicas, os mais velhos - nem todos, mas a maioria - tenta ser gentil. Já vi senhores aparentemente de 80+, cederem seu lugar a uma senhora, talvez 70+. Já vi muitos se ajudando a subir e descer, principalmente daqueles ônibus mais antigos cujos degraus são uma verdadeira escalada. Cumprimentam-se, sorriem, fazem algum comentário banal. Há comunicação, notam a presença do outro, preocupam-se com aquele ser humano que está ali na mesma situação. Reclamam também, mas faz parte. Gosto mais de observar, mas quando instigada a interagir o faço de bom grado.

Ontem, em um percurso rápido, logo me sentei do lado do corredor, para minha comodidade, confesso. Uma senhora veio se sentar ao meu lado avisando que iria descer logo. Eu também. Me afastei para perto da janela e ela agradeceu se sentou; descobrimos que desceríamos no mesmo ponto. Assim a prosa começou.

Nilda, bonita e bem disposta, me conta que quer chegar logo em casa para cozinhar. Eu digo qualquer coisa a respeito de pensar o que fazer e ela prontamente responde que tem tudo programado na cabeça. Ok.

Conversa vai, conversa vem, acabou me contando sua vida. Após trabalhar 28 anos como secretária pessoal  aposentou-se, mas seu chefe não se acostumou sem ela. Continua trabalhando das 09h00 às 17h00, numa boa, pois está mais do que acostumada com a rotina. Porém, querendo aumentar sua renda, resolveu fazer refeições fitness criando um sistema que permite atender seus clientes de um dia para o outro usando whatsup. Congela os ingredientes, pois precisa de quantidade, e sabe exatamente preparar refeições por peso, em proteínas, carbo-hidratos, fibras, etc, conforme o pedido. Gostei da Nilda. Descemos juntas e pedi seu cartão. Não tinha, mas rapidamente me adicionou aos seus contatos e meia hora depois eu recebia seu menu prático, bem explicado e com valores.

Fiquei contente e surpresa ao ver tamanha eficiência e simplicidade. Sem dúvida, vou experimentar um kit fitness, com legumes, arroz integral, proteína, e tudo que eu preciso para  uma refeição balanceada e ainda ganhar de brinde 3 potes de feijão preto ou fradinho. Detalhe: ela entrega em casa.

Fico pensando que enquanto alguns fazem de tudo para complicar a vida, para dificultar qualquer movimento de mudança, outros se arriscam, tentam e se reinventam naturalmente.

Achei que valia a pena contar.

22 maio 2018

A NOVA FACE DA VELHA SOLIDÃO por Sandra Schamas

Já estou nas alturas. Sem preocupações nem cobranças, apenas aproveito o tempo em minha companhia. Tiro um cochilo e acordo com o rosto no vidro. Vejo pela janela o solo quadriculado, lembrando uma colcha de retalhos de veludo cotelê, com todos os tons de verde, marrom e ocre. Plantações.
A cidade na linha do horizonte como se fosse uma maquete morta, velha e empoeirada, arreganha arranha-céus  sem vida, sem cor.  

Divago na descrição do cenário para tentar me entender. Cochilo novamente.

Agora vejo as montanhas, a neve branca  nos cumes, como bolos de chocolate amargo polvilhados com açúcar de confeiteiro. Nas montanhas, vejo uma face. É a nova face da velha solidão. Conheço o medo de estar só, já senti o vácuo de estar entre pessoas que se tornaram estranhas, sinto o vazio dos que se foram  e a solidão das  decisões. 

Sobrevoando as montanhas do Colorado procuro gravar o momento, esta nova face que me assusta e atrai. É bela, é a solidão bem vinda que confirma que sou só, porém faço parte deste grande todo, onde os detalhes desaparecem  nas nuvens. 

Quanto tempo eu perdi. Agora simplesmente sou.

Neste momento, a paisagem é lunar. As nuvens de carneirinho se confundem com as montanhas cobertas de neve. Não me lembro de ter visto nada parecido. Flocos de algodão doce e açúcar de confeiteiro.

Sou meu pai e minha mãe, meu irmão e minha irmã, meu marido e minha esposa.
Eu sou. 

Da janela, vejo apenas fumaça e luz. Paz  é o deleite de estar só. Sinto cada parte do meu corpo:  mãos ressecadas, cabelo despenteado, narinas dilatadas pelo ar pressurizado, mão e braço adormecidos, pernas inchadas e o coração batendo. 

Sinto-me só, deliciosamente só.

04 maio 2018

ATÉ A ÁFRICA por Sandra Schamas




Pessoa inteligente com mestrado, pós-graduação em várias áreas. Decidiu ser escritor na maturidade, quando sua bagagem de vida havia acumulado experiências significativas. Porém, não saiu escrevendo à toa. Foi buscar elementos, oficinas e, o principal, leitores. 

Sabia que quando estivesse pronto um editor iria descobri-lo e publicá-lo e assim aconteceu. Resultado? Finalista do Prêmio Jabuti.

Bom amigo, presente, pontual, sincero. Às vezes um pouco esquisito, mas, afinal, todos nós somos de um modo ou de outro. 

Outro dia falávamos sobre envelhecer. Quando digo envelhecer estou falando dos 80+, posto que 60+ já somos. Digo que gostaria de morar na praia, de poder ver o mar todos os dias e ele me responde que já traçou seu plano: vai trocar seu apartamento na cidade por uma casa no litoral, pé na areia. Um imóvel pelo outro, taco a taco. Então, um dia, ele vai entrar no mar calmamente, sentir as ondas nos pés, nas pernas, vai andar até onde der, depois mergulhar e nadar até a África.

Fiquei sem resposta, pensando apenas. Imaginei a cena, me emocionei.

Que privilégio poder decidir o final do livro que conta a história da própria vida!

03 maio 2018

CORAGEM por Sandra Schamas


Somos Reinventandos, participantes do curso de Reinvenção Profissional da Uni-Inversidade dentro Movimento LAB60+. Nosso objetivo é divulgar a importância de nos reinventarmos sempre principalmente na maturidade, tanto pessoal quanto profissionalmente.

Nos reunimos mensalmente e nosso primeiro tema de discussão foi CORAGEM.

A coragem pode ser moral forte perante o perigo.  Pode ser bravura, intrepidez, perseverança, capacidade de suportar esforço, audácia e uma infinidade de sinônimos. Estamos falando sobre a coragem de nos reinventarmos profissionalmente depois dos 50+, 60+ ou 70+, que pode levar também a uma reinvenção pessoal, renovando os propósitos para nossa vida, ou procurando novos desafios.

Costumamos dizer que somos os  'vetera novis', os novos velhos nessa época em que a idade média do brasileiro sobe a cada dia,  com perspectivas de chegarmos aos 100.

Quando eu penso em coragem, penso no filme da década de 80 “Sociedade dos Poetas Mortos”,  com Robim Williams. Penso na cena clássica no final do filme quando os alunos ousam subir nas carteiras e dizem Captain my Captain referindo-se ao poema de Withman e defendendo o professor.

Pessoalmente acredito que  a coragem pode vir depois de um grande medo; e o medo pode esconder uma grande coragem. Medo e coragem andam juntos, competindo entre si e nos desafiando a tentar, ousar, arriscar, o que nem sempre é tão fácil.



Diego Liguori, participante do grupo, nos chama a atenção para as pequenas coragens de cada dia. 

Diz ele:

Como vimos, existe a coragem com letra maiúscula, aquela que pode nos levar e enfrentar grandes perigos por uma causa que consideramos essencial.

Porém, também existe a coragem de todos os dias, das pequenas ações. Estarmos aqui juntos, o que parece tão simples, não é um ato de coragem? Poderíamos estar em casa, lendo um livro, mas viemos até aqui procurando algo mais. Não é preciso coragem para levantar-se todos os dias com vontade de fazer coisas e com novas ideias na cabeça?

E a questão financeira? Viver com a incerteza de não saber se nossos rendimentos atuais, sejam quais forem, vão nos permitir ter uma vida digna até o fim.

Por fim, que dizer do esforço de mostrar que ser idoso não é um carimbo de inutilidade. Pelo contrário, temos muito a oferecer à sociedade, mas conhecendo também nossas limitações, sem pretender ir além do que elas sinalizam. Não é um esforço coletivo de coragem que temos que cultivar todos os momentos? 

Falamos também da coragem de procurar fazer algo diferente a cada dia, a coragem de enfrentar a cidade grande e agressiva, a coragem se conhecer, a coragem de falar o que pensa dentro de uma sociedade que valoriza as aparências, a coragem para sairmos de casa e buscarmos nossos pares e fazermos alguma coisa pelo bem comum. A coragem de ser!

Clarice Lispector


" Coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante."



03 abril 2018

ESCREVER FAZ BEM OU FAZ MAL? por Sandra Schamas



Quando a maturidade chega, vem uma vontade de escrever memórias, como se assim a gente ficasse por aqui para sempre. Além disso, tentar organizar um passado faz com que a gente passe a vida a limpo. Dizem que escrever memórias faz bem, mantém a cabeça ocupada com o projeto, exercita o relembrar. Acho que às vezes a gente fica bem, às vezes não. Para revirar as gavetas do passado é preciso curiosidade, uma certa coragem e muito desprendimento.

Já faz um ano que publiquei meu livro "As Tias,  lendas de uma família..." pela Editora Patuá. Isso me fez avaliar o resultado, ou seja a resposta dos leitores. Não são tantos quantos eu gostaria, mas são bons, atentos, generosos nos comentários e nas críticas. Posso dizer que valeu.

Refleti também sobre a minha escrita, o meu processo de escrever as memórias e como eu me sinto ao escrever meus textos, sejam eles de um projeto em andamento ou simples crônicas que posto aqui e ali.

Escrever "As Tias" foi um longo processo mas resultou em um estado de accomplishment. Como traduzir? Plenitude, realização, talvez dever cumprido ou sonho que se realizou às custas de perseverança e determinação. Tive uma fase inicial, quando descobri alguns segredos de família e, com isso, a vontade de querer saber mais sobre as pessoas que não estavam mais aqui. Principalmente minha avó, que pouco conheci, e despertou em mim imensa curiosidade. Na fase da pesquisa, o cuidado de tocar nos assuntos proibidos e tentar entender o como cada omissão afetou seus descendentes. A seguir, foi a fase do quebra-cabeças, juntando peças, ou fragmentos de relatos. As pessoas foram morrendo, nesse meio tempo, e umas histórias soltas foram se conectando com outras.

Ouvi muitas opiniões de leitores beta, professores e escritores. Travei. Deixei o livro de lado por algum tempo e marquei uma data para fazer a revisão final. Nesse meio tempo, pensei que o livro era meu e que assumiria toda responsabilidade pelo conteúdo e qualidade do texto. As opiniões foram todas válidas, mas escrevi como eu mesma achava que deveria ser. Nessa revisão, limpei tudo o que indicasse julgamento ou preconceito de minha parte e assim pude perceber quanto amor existiu nessa família de imigrantes e seus descendentes.

Escrever sobre a história da família de minha mãe me fez bem. Foi uma sublimação dos ressentimentos que juntei durante minha própria vida, foi um passar a limpo muito benéfico. Senti que todas aquelas pessoas estavam ali comigo e que elas também estavam se sentindo bem. Tive uma longa depressão “pós-parto” e depois de quase um ano decidi que o que eu quero fazer da vida de agora em diante é escrever. E tudo que diz respeito ao hábito de escreve: ler, estudar e estar com pessoas que tenham o mesmo interesse que eu.

Acredito que escrever “literatura” me faz bem. Escrevo todos os dias. Escrevo o que eu quero que os outros leiam no computador. Depois transformo em livros, contos, cônicas, mini contos e publico algumas coisas. Porém, tenho cadernos e mais cadernos de escrita a mão, com canetas coloridas ( ou não, depende da fase) onde escrevo o que não quero que leiam. Geralmente são cadernos bonitos, brochuras com capa de tecido ou belas estampas onde escrevo para mim, para minha reflexão e autoconhecimento. Às vezes o processo é um pouco doloroso, mas não tenho censura, ponho para fora o que me aflige. Escrever assim também me faz bem.

02 abril 2018

QUANDO ELA COMEÇA? por Sandra Schamas

Sabemos muito bem como a velhice termina. Mas,como e quando ela começa?

Dizer que as três fases da vida são infância, idade adulta e velhice é simplificar muito nossa existência por aqui. Os ritos de passagem de culturas diferentes indicavam ( e ainda indicam)  quando a criança deixa de ser criança e passa a ser adulta. Uma passagem abrupta e decisiva. Simplificando, as meninas estão prontas para procriar e os meninos para serem  machos corajosos e cuidarem das fêmeas e suas crias.

Já, atualmente a subdivisão começa na infância:  primeira infância, segunda infância e pré-adolescência. E a adolescência, que há muito pouco tempo nem existia hoje é super valorizada, pode ter uma indicação de quando começa, mas não se sabe quando termina.  Em alguns casos, vai até depois dos trinta anos...

A indicação que a idade adulta  começa fica entre 18 e 21 anos quando o sujeito já pode dirigir e beber em lugares públicos. Depois são os anos de investir na carreira, juntar dinheiro, formar família, ou não. Mas, vamos pensar que hoje vivemos mais, fazemos coisas que as pessoas da mesma idade que temos não faziam antes - esportes, viagens, reinvenção do trabalho, novos relacionamentos e por aí vai. Ah! Dizem que os 60+ são os novos 40+! Os 50+ são os novos 30 e por ai vai. Com isso, o que observo é que a velhice pode também ser classificada. Digamos que entre 40 e 60 somos aspirantes a novos velhos. A partir dos 60 as mudanças se tornam mais evidentes e podemos dizer que estamos ficando velhos. Depois dos 75,  sim,  já somos velhos, veteranos em velhice.

Aspirantes a velhos
Novos velhos
Veteranos em velhice...


Acho que é mais ou menos assim.

O quede fato importa é entrar em contato com a gente mesmo, buscar o autoconhecimento  em qualquer fase da vida, principalmente depois de um tempo quando começamos a sentir mais as transformações do corpo, e tirar partido.

Talvez a velhice seja uma segunda adolescência.Temos uma ideia de quando começa, mas não sabemos quando vai terminar...

15 março 2018

APOSENTANDOS - por Sandra Schamas


Encontro com  Carlos Francisco, 66, não nos víamos há muitos anos e o assunto era mais ou menos o esperado. Como vai a família, e fulano e sicrana, e os filhos,  o que tem feito. A conversa sai do lugar comum quando ele me conta que está  se aposentando. Nada de depressão e nem entrar naquela de ficar consertando a campainha, trocando lâmpada, indo ao mercado ou "pesquisando" na internet.

"Estou me aposentando numa boa porque já venho pensando nisso há anos. Me programei, voltei a ter moto  e me distraio com isso já faz tempo. Fui incrementando a máquina, dando um trato e depois troquei por uma melhor. Hoje  está do jeito que eu queria.  Sabe o que eu faço?  Quando as coisas começam a embaçar,  eu pego a moto e saio por aí. Dou uma volta, às vezes pego a estrada e volto pra casa novinho, cabeça fria. E tenho os amigos também, a turma que se encontra na padaria do Venâncio todo sábado de manhã. É sagrado. A gente vai pra lá, bate papo, fala de moto, às vezes sai aquele enxame de motoqueiros só pelo prazer de pegar a estrada. Olha, vou contar pra você. Não tem coisa melhor.

Durante a semana eu gosto de fazer caminhadas de pelo menos  cinco quilômetros, até dez. É pra manter a forma. Ás vezes vou de manhã e de tarde. A cidade é plana e eu não tenho preguiça. Também não tenho barriga, olha aqui ó. "

E bate a mão no estômago com orgulho. Nisso, chegam as filhas e abraçam o pai .

" Meu pai não está gato, tia? Olha só, tem até tatuagem."

Pergunto se ele usa jaqueta de couro e bandana, ele dá risada. Cuidar da moto e ir adquirindo os acessórios fez parte do projeto de aposentadoria. Hoje, em vez de ficar cutucando o passado ele tem coragem de fazer o que gosta,  olha para frente, para a estrada, caminhando ou dirigindo a bike.

Carlos Francisco tem um bom humor que faz com que a gente queira ficar por perto. Dorme bem, se exercita, se alimenta bem, mas não dispensa um torresminho, carne de porco, pimenta  a cerveja. Dedica tempo de qualidade à família, o filho mais novo e o sobrinho também curtem moto, saem os três juntos. Aos domingos, sempre acontece um almoço no casarão antigo que era da avó, e agora a mãe e as tias tanto cuidam da casa como preparam os almoços. A família toda comparece, primos, sobrinhos, tios, tias e agregados.

No facebook Carlos mantém discreto perfil, porém não deixa de marcar sua presença entre os amigos e assim nunca perdemos o contato nesses quase 40 anos. As fotos  das viagens que faz com a esposa, ou das aventuras on the road, são geralmente da paisagem. Quando ele aparece, está lá fundo, mal da para ver. Entendo com isso a importância que ele dá para a natureza e os belos cenários que visita

Meu amigo me fez pensar que ele é um bom exemplo de vetera novis, ou seja, de um novo velho que faz do limão que é envelhecer uma boa limonada (ou um copo de cerveja gelada). Sem muita firula, planejou sua aposentadoria e, no momento em que essa fase da vida está prestes a acontecer, já tem seu plano B. Se vai continuar para sempre? Não importa.

Não importam também que os comentários preconceituosos pipoquem  aqui e ali. Coroa motoqueiro, olha só de bandana e tatuagem, esses velhos de moto ...  E outras alfinetadas se perdem no pó da estrada, eu diria que é pura inveja. Quem não se lembra de Peter Fonda e Jack Nicholson em Easy Rider? Quem não tem vontade de pegar uma moto e sair pela estrada com o vento batendo no rosto?

A liberdade que a gente sempre anda buscando está bem na nossa frente, basta mudar o modo de olhar.

Get your motor runnin'
Head out on the highway
Lookin' for adventure
And whatever comes our way...

13 março 2018

UMA PALAVRINHA por Sandra Schamas


UMA PALAVRINHA

Medicina. Seis anos de estudo em período integral. Depois, mais quatro anos de residência e especialização - poucas vagas para completar a prática – opção, quase obrigação, de mestrado e doutorado. Dez anos de estudos, mais disposição para estudar a vida inteira. A Medicina é praticamente uma missão, o médico jura consagrar sua vida a serviço da humanidade e ter a saúde dos pacientes como primeira preocupação. Precisa saber lidar com os pacientes e suas fragilidades, precisa estar preparado para conviver com a dor e com a morte. Culturalmente, temos dificuldade até de tocar no assunto. Se alguém diz quando eu morrer, logo ouve um credo vira essa boca pra lá...
Está muito na moda dizer que os 50 são os novos 30, os 40 são os novos 60, mas será que os que estão abaixo desses números sabem disso?

Maria Cristina, bióloga, divorciada, 61 anos, feminista e defensora da ecologia vai a um médico ginecologista pela primeira vez. Depois das perguntas de praxe o jovem doutor pergunta:

- A senhora ainda tem vida sexual?

Ainda? Por que ainda? Bruna Lombardi, fotografada pelo marido em poses sensuais, tem 65. Ney Matogrosso, aos 76, arrasa nos palcos. Ah, mas eles são artistas! São. E daí?

Por acaso,  na na ocasião da consulta, Maria Cristina estava sozinha, mas se sentiu constrangida ao dizer isso ao médico. Pensou em várias repostas não muito educadas, mas achou melhor falar a verdade A palavrinha ‘ainda’ ficou zanzando na sua cabeça por um bom tempo. Se ela fosse homem certamente o médico não faria essa pergunta.

Há muitos anos assisti a uma palestra do nagual, ou xamã, conhecido por Dom Miguel Ruiz. Nascido no México, esse médico neurologista resolveu estudar as tradições religiosas de seus ancestrais, divulgá-las por meio de palestras e livros, além de adotá-las como filosofia de vida. O primeiro livro “Os Quatro Compromissos da Filosofia Tolteca” explica que esses quatro acordos abrangem toda a sabedoria do mundo. São eles: 
1- seja impecável com sua palavra; 
2- não leve nada para o lado pessoal; 
3- não tire conclusões; 
4 - dê sempre o melhor de si. 

Na ocasião fiquei intrigada e me aprofundei no assunto. Porém, com o passar dos anos, o compromisso que sempre me vem à mente é número 4- não tire conclusões. Não estou aqui para pregar nem convencer ninguém, mas as palavras do nagual me marcaram. Não gosto quando tiram conclusões a meu respeito sem me conhecer e, com muita disciplina, procuro não fazer o mesmo. É uma luta, mas não é impossível. Essa memória me veio assim que eu ouvi o relato de Maria Cristina.

Na nossa cultura a gente sempre “acha”. Acha que o outro ficou chateado, que entendeu, ou não entendeu, que gosta e aprova isso ou aquilo. Acha que podia, que devia, que sabia... Pior, colocamos pensamentos - palavras e ações - nossos na cabeça do outro. Tantos desentendimentos por causa disso.

Os novos velhos - os vetera novis – ainda não são reconhecidos em uma sociedade preconceituosa e “achista”. Para falar a verdade, muitos ainda não se reconhecem, pois representam uma faixa estaria específica, fruto das mudanças rápidas e infinitas que a sociedade vem passando. Achamos que fulano é velho, ou que nós somos velhos, e adotamos todos os clichês. No ônibus/metrô/etc. a imagem que identifica os velhos é a de uma figura humana inclinada, segurando uma bengala. 

Vamos pensar nas pessoas que conhecemos entre 60 e 75 anos. Além da lista de famosos, vamos pensar nos amigos e parentes. Meus amigos de 65 ou 75 anos jogam duas ou três partidas de tênis todo fim de semana. Uma professora vetera novis, de 62 anos, é maratonista. Vários novos velhos, como eu, com mais de 60, estão reinventando sua carreira profissional.

A palavra que escapa, o ato falho, diz muito. Citei um exemplo da falta de empatia de um jovem médico, mas o tal “achismo” está em todos nós. Os profissionais da saúde, porém, têm responsabilidade maior, pois estão lidando com saúde e doença, vida e morte de outro ser humano.

Para finalizar, dentro ainda do contexto de não tirar conclusões precipitadas, mais um exemplo, dessa vez sobre dor. Doutor, estou com uma dor aqui... Não, o senhor não está com dor aí. Como assim? Se estou falando que estou é porque estou. 

Hoje se sabe que a dor é uma doença, que algo não está bem e o cérebro manda esse alerta por inúmeras razões. No envelhecimento o corpo sinaliza o desgaste natural, se o paciente diz que está doendo é porque sente dor, dormência, coceira, desconforto, enfim. Não dar ouvidos é, no mínimo, cruel.
Da mesma maneira, quando o médico pergunta se a paciente ainda tem vida sexual é porque chegou à conclusão de que não tem mais.  Será? A libido desconhece números.

07 março 2018

ACOMPANHANTES E OS NOVOS VELHOS por Sandra Schamas


Não seria ótimo se, nos treinamentos de funcionários da área de saúde, houvesse uma aula, um bate papo, sobre quem são os vetera novis, os novos velhos? Essa geração que se multiplica e chama a atenção da mídia e da publicidade? Essas pessoas que, como eu,  nasceram depois da segunda guerra, sobreviveram a fortes mudanças, transformações  e movimentos e, portanto, têm muito a dar e receber?

Com toda a afetividade do brasileiro, é costume que os filhos tomem à frente a partir do momento em que seus pais atingem certa idade, geralmente depois da aposentadoria.  Para nossa cultura isso significa amor, você cuidou de mim agora eu cuido de você. Quero que todos saibam que sou bom filho e que eu me preocupo com você.
 
Segundo psicanalistas, existe uma fase importante na adolescência que é o processo de reafirmação da identidade pessoal. As relações com os pais têm que mudar para que os jovens possam ascender ideias próprias. É conhecida a fase em que os genitores, que eram heróis, passam a não saber nada; os filhos sabem tudo. É muito comum isso se estender por mais tempo ou se repetir mais tarde, quando os pais envelhecem.  Vamos combinar que, na realidade, pais e filhos têm sua sabedoria de acordo com o tempo em que vivem ou já viveram. Mas, como conseguir um acordo saudável e satisfatório?
Eu diria que é conversando. Conversando sobre a vida e sobre a morte, sem tabus. Não gostamos de falar sobre a morte, mas todos nós vamos morrer. Os adultos, jovens e nem tão jovens, fazem questão de não pensar no assunto, acham que são highlanders, nunca vão morrer. Nós que estamos envelhecendo, ou seja, os que vivemos mais, estamos na linha de frente, temos voz ativa, somos os “desbravadores do futuro”, merecemos respeito.

No último dia do ano de 2017, por volta das 14h00hs, dirijo-me ao pronto socorro do meu convênio médico, que é muito popular e acessível às pessoas com 50 anos ou mais. A sala de espera está cheia, no entanto,  o operacional de atendimento flui de modo eficaz. Enquanto espero meu nome aparecer na tela, em letras bem grandes, diga-se de passagem, observo como é meu costume observar. Apenas três pessoas estão desacompanhadas: uma senhora parecida comigo, um senhor que aparentemente está sempre lá, e eu mesma.


Um homem se aproxima e educadamente me pede para trocar de lugar para que sua esposa possa ficar ao lado da nora. Claro, sem problemas. Levanto-me e espero ver uma esposa com alguma dificuldade física. Não, ao contrário, uma senhora perfeitamente independente e capaz se aproxima e toma o meu lugar. Por que será que o marido precisou falar por ela? Gentileza? Proteção, talvez.

Sou encaminhada para a sala de medicação e me acomodo bem em frente à porta, com plena visão de quem entra ou sai. Mais uma paciente se aproxima; de cadeira de rodas dessa vez, empurrada pela filha determinada. A enfermeira pergunta se a paciente anda. A filha diz que sim, e a partir daí a interação é apenas entre a enfermeira e a filha. Acomodam a paciente na poltrona feito uma boneca de pano. Será que a paciente consegue se comunicar, ou acha mais fácil se deixar levar?

Volto para a sala de espera e vejo um casal com um bebê chorão no colo, acompanhando um senhor. Trocam a fralda do bebê enquanto eu penso que pronto socorro não é o lugar ideal. Com tanta gente tossindo... O médico chama o senhor para a consulta, o filho levanta primeiro e vai entrando. Depois chama o pai. Vem, pai.

Quatro pessoas ocupam a primeira fileira de cadeiras estofadas de plástico: um casal e duas senhoras. O marido puxa conversa comigo e começa a falar da cunhada. As três mulheres são parecidas: duas superprotegem a que, pelo olhar perdido, identifico como a paciente. É que ela tem a cabeça boa, sabe, mas é teimosa, não toma os remédios direito, não quer se tratar, e a gente não sabe o que fazer, explica o gentil cavalheiro. Se a cabeça está boa para que tantos acompanhantes?
Enquanto aguardo o resultado dos exames fico pensando no que eu quero.

Naquele dia, e pela proximidade, vou ao pronto socorro de ônibus, passo pela triagem e descrevo meus sintomas para o médico. Quando questionada se quero tomar uma injeção de cortisona, digo que sim. Detesto cortisona, odeio, mas na crise respiratória é o que funciona. Será que seria melhor ter meus filhos ali, um de cada lado, decidindo tudo por mim? Seria cômodo. Todos gostam de atenção e em qualquer idade, inclusive eu, mas cada coisa em seu lugar. Se as pessoas vão decidir tudo por mim, não vejo sentido em ficar por aqui.

Minha mente divaga.

Será que os filhos acham que, a partir de certo momento, têm que cuidar de nós, que somos carta fora do baralho, e só eles sabem o que é bom para nós? Talvez não, depende. Por que não conversar e saber o que de fato a gente quer? Todos podem colaborar sem oprimir. Gostamos de estar no comando da nossa vida e só vamos jogar a toalha quando não houver mais opção. Enquanto isso, ainda temos um bom tempo pela frente, pelo menos é o que indicam as estatísticas sobre da longevidade.


08 janeiro 2018

O Estigma de L. de Leonor Cione

Aproveito esses dias entre o Natal e o Ano Novo para mergulhar no novo romance de Leonor Cione "O Estigma de L." - Editoria Quelônio - São Paulo - 2017. Um projeto gráfico arrojado de Silvia Nastari, capa ilustrada com colagem a partir de fotos e pinturas dos anos 1950, quando a trama acontece.
É a história de Lili que não recorda o passado. Está em um sanatório e sabe apenas que não gosta do lugar. As pessoas ao seu redor não se comunicam, por isso, prefere ficar no seu canto favorito perto da janela, ao lado de uma mancha de mofo que se parece com um mapa.  As atendentes são grosseiras, o prato de comida já vem feito da cozinha e o uniforme é feio e amassado.

Entre os pouquíssimos pertences, que guarda em uma lata de biscoito enferrujada, há um velho almanaque, remota referência que provoca em Lili flashes de seu passado. Para ela, não faz diferença que aquelas previsões sejam antigas, o que importa é que basta procurar e logo encontra alternativas e conselhos nas palavras que cheiram a mofo. De vez em quando, Lili não toma o comprimido amarelo, pois precisa lembrar-se de alguém que venha buscá-la. Depois de 20 anos, talvez? Assim, as lembranças vão brotando desordenadamente durante as longas horas de sua rotina sem sentido.

Acompanha o livro um almanaque criado integralmente pela autora, porém nos moldes da época, e que complementa de forma bastante original a obra. Contém variedades para todos os meses do ano como Horóscopo, Pensamentos, Fases da Lua, Você Sabia?, etc. e os peculiares "reclames", como por exemplo o do Xampu Adeline Briand - o segredo de cabecinhas lindas,  ou o Elixir Guarani - que levanta até defunto.

Mês a mês, de mãos dadas com L., e dentro de um sanatório árido, você vai se inteirando dos fatos dramáticos na vida da estranha mulher. A escrita vem para você leve, apesar do conteúdo dramático; tudo  na medida certa com a concisão da narrativa enxuta e precisa. Na minha opinião, um bom livro é assim: faz você se sentir abduzido e totalmente  inserido no contexto da ficção. Do primeiro ao último capítulo, ou seja, de janeiro a dezembro, você é Lili, vê o que ela vê, sente o que ela sente  presa na própria amnésia, vai desvendando com ela os fatos que levam à reflexão. Por fim,  o desfecho narrado em primeira pessoa aproxima ainda mais o leitor.

Nesse seu primeiro romance, Leonor Cione nos surpreende com  seu talento de veterana. Sabe contar  uma história bem contada, intrigante, apaixonante e muito bem apresentada. Gostei muito e recomendo. Quer presente melhor que uma boa leitura?


Sandra Schamas
São Paulo janeiro 2018.