13 março 2018

UMA PALAVRINHA por Sandra Schamas


UMA PALAVRINHA

Medicina. Seis anos de estudo em período integral. Depois, mais quatro anos de residência e especialização - poucas vagas para completar a prática – opção, quase obrigação, de mestrado e doutorado. Dez anos de estudos, mais disposição para estudar a vida inteira. A Medicina é praticamente uma missão, o médico jura consagrar sua vida a serviço da humanidade e ter a saúde dos pacientes como primeira preocupação. Precisa saber lidar com os pacientes e suas fragilidades, precisa estar preparado para conviver com a dor e com a morte. Culturalmente, temos dificuldade até de tocar no assunto. Se alguém diz quando eu morrer, logo ouve um credo vira essa boca pra lá...
Está muito na moda dizer que os 50 são os novos 30, os 40 são os novos 60, mas será que os que estão abaixo desses números sabem disso?

Maria Cristina, bióloga, divorciada, 61 anos, feminista e defensora da ecologia vai a um médico ginecologista pela primeira vez. Depois das perguntas de praxe o jovem doutor pergunta:

- A senhora ainda tem vida sexual?

Ainda? Por que ainda? Bruna Lombardi, fotografada pelo marido em poses sensuais, tem 65. Ney Matogrosso, aos 76, arrasa nos palcos. Ah, mas eles são artistas! São. E daí?

Por acaso,  na na ocasião da consulta, Maria Cristina estava sozinha, mas se sentiu constrangida ao dizer isso ao médico. Pensou em várias repostas não muito educadas, mas achou melhor falar a verdade A palavrinha ‘ainda’ ficou zanzando na sua cabeça por um bom tempo. Se ela fosse homem certamente o médico não faria essa pergunta.

Há muitos anos assisti a uma palestra do nagual, ou xamã, conhecido por Dom Miguel Ruiz. Nascido no México, esse médico neurologista resolveu estudar as tradições religiosas de seus ancestrais, divulgá-las por meio de palestras e livros, além de adotá-las como filosofia de vida. O primeiro livro “Os Quatro Compromissos da Filosofia Tolteca” explica que esses quatro acordos abrangem toda a sabedoria do mundo. São eles: 
1- seja impecável com sua palavra; 
2- não leve nada para o lado pessoal; 
3- não tire conclusões; 
4 - dê sempre o melhor de si. 

Na ocasião fiquei intrigada e me aprofundei no assunto. Porém, com o passar dos anos, o compromisso que sempre me vem à mente é número 4- não tire conclusões. Não estou aqui para pregar nem convencer ninguém, mas as palavras do nagual me marcaram. Não gosto quando tiram conclusões a meu respeito sem me conhecer e, com muita disciplina, procuro não fazer o mesmo. É uma luta, mas não é impossível. Essa memória me veio assim que eu ouvi o relato de Maria Cristina.

Na nossa cultura a gente sempre “acha”. Acha que o outro ficou chateado, que entendeu, ou não entendeu, que gosta e aprova isso ou aquilo. Acha que podia, que devia, que sabia... Pior, colocamos pensamentos - palavras e ações - nossos na cabeça do outro. Tantos desentendimentos por causa disso.

Os novos velhos - os vetera novis – ainda não são reconhecidos em uma sociedade preconceituosa e “achista”. Para falar a verdade, muitos ainda não se reconhecem, pois representam uma faixa estaria específica, fruto das mudanças rápidas e infinitas que a sociedade vem passando. Achamos que fulano é velho, ou que nós somos velhos, e adotamos todos os clichês. No ônibus/metrô/etc. a imagem que identifica os velhos é a de uma figura humana inclinada, segurando uma bengala. 

Vamos pensar nas pessoas que conhecemos entre 60 e 75 anos. Além da lista de famosos, vamos pensar nos amigos e parentes. Meus amigos de 65 ou 75 anos jogam duas ou três partidas de tênis todo fim de semana. Uma professora vetera novis, de 62 anos, é maratonista. Vários novos velhos, como eu, com mais de 60, estão reinventando sua carreira profissional.

A palavra que escapa, o ato falho, diz muito. Citei um exemplo da falta de empatia de um jovem médico, mas o tal “achismo” está em todos nós. Os profissionais da saúde, porém, têm responsabilidade maior, pois estão lidando com saúde e doença, vida e morte de outro ser humano.

Para finalizar, dentro ainda do contexto de não tirar conclusões precipitadas, mais um exemplo, dessa vez sobre dor. Doutor, estou com uma dor aqui... Não, o senhor não está com dor aí. Como assim? Se estou falando que estou é porque estou. 

Hoje se sabe que a dor é uma doença, que algo não está bem e o cérebro manda esse alerta por inúmeras razões. No envelhecimento o corpo sinaliza o desgaste natural, se o paciente diz que está doendo é porque sente dor, dormência, coceira, desconforto, enfim. Não dar ouvidos é, no mínimo, cruel.
Da mesma maneira, quando o médico pergunta se a paciente ainda tem vida sexual é porque chegou à conclusão de que não tem mais.  Será? A libido desconhece números.

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