UMA PALAVRINHA
Medicina. Seis anos de estudo em período integral. Depois, mais
quatro anos de residência e especialização - poucas vagas para completar a
prática – opção, quase obrigação, de mestrado e doutorado. Dez anos de estudos,
mais disposição para estudar a vida inteira. A Medicina é praticamente uma
missão, o médico jura consagrar sua vida a serviço da humanidade e ter a saúde
dos pacientes como primeira preocupação. Precisa saber lidar com os pacientes e
suas fragilidades, precisa estar preparado para conviver com a dor e com a
morte. Culturalmente, temos dificuldade até de tocar no assunto. Se alguém diz
quando eu morrer, logo ouve um credo vira essa boca pra lá...
Está muito
na moda dizer que os 50 são os novos 30, os 40 são os novos 60, mas será que os
que estão abaixo desses números sabem disso?
Maria
Cristina, bióloga, divorciada, 61 anos, feminista e defensora da ecologia vai a
um médico ginecologista pela primeira vez. Depois das perguntas de praxe o
jovem doutor pergunta:
- A senhora
ainda tem vida sexual?
Ainda? Por
que ainda? Bruna Lombardi, fotografada pelo marido em poses sensuais, tem 65. Ney
Matogrosso, aos 76, arrasa nos palcos. Ah, mas eles são artistas! São. E daí?
Por acaso, na na ocasião da consulta, Maria Cristina estava sozinha, mas
se sentiu constrangida ao dizer isso ao médico. Pensou em várias repostas não
muito educadas, mas achou melhor falar a verdade A palavrinha ‘ainda’ ficou
zanzando na sua cabeça por um bom tempo. Se ela fosse homem certamente o médico
não faria essa pergunta.
Há muitos
anos assisti a uma palestra do nagual,
ou xamã, conhecido por Dom Miguel Ruiz. Nascido no México, esse médico
neurologista resolveu estudar as tradições religiosas de seus ancestrais, divulgá-las
por meio de palestras e livros, além de adotá-las como filosofia de vida. O
primeiro livro “Os Quatro Compromissos da Filosofia Tolteca” explica que esses quatro
acordos abrangem toda a sabedoria do mundo. São eles:
1- seja impecável com sua palavra;
2- não leve nada para o lado pessoal;
3- não tire conclusões;
4 - dê sempre o
melhor de si.
Na ocasião fiquei intrigada e me aprofundei no assunto. Porém, com
o passar dos anos, o compromisso que sempre me vem à mente é número 4- não tire conclusões. Não estou aqui
para pregar nem convencer ninguém, mas as palavras do nagual me marcaram. Não gosto quando tiram
conclusões a meu respeito sem me conhecer e, com muita disciplina, procuro não
fazer o mesmo. É uma luta, mas não é impossível. Essa memória me veio assim que
eu ouvi o relato de Maria Cristina.
Na nossa
cultura a gente sempre “acha”. Acha que o outro ficou chateado, que entendeu,
ou não entendeu, que gosta e aprova isso ou aquilo. Acha que podia, que devia,
que sabia... Pior, colocamos pensamentos - palavras e ações - nossos na cabeça do
outro. Tantos desentendimentos por causa disso.
Os novos velhos - os vetera novis – ainda não são reconhecidos em uma sociedade
preconceituosa e “achista”. Para falar a verdade, muitos ainda não se
reconhecem, pois representam uma faixa estaria específica, fruto das mudanças
rápidas e infinitas que a sociedade vem passando. Achamos que fulano é velho,
ou que nós somos velhos, e adotamos todos os clichês. No ônibus/metrô/etc. a
imagem que identifica os velhos é a de uma figura humana inclinada, segurando
uma bengala.
Vamos pensar nas pessoas que conhecemos entre 60 e 75 anos. Além
da lista de famosos, vamos pensar nos amigos e parentes. Meus amigos de 65 ou
75 anos jogam duas ou três partidas de tênis todo fim de semana. Uma professora
vetera novis, de 62 anos, é
maratonista. Vários novos velhos, como eu, com mais de 60, estão reinventando sua carreira profissional.
A palavra que escapa, o ato falho, diz muito. Citei um exemplo da falta de
empatia de um jovem médico, mas o tal “achismo” está em todos nós. Os profissionais
da saúde, porém, têm responsabilidade maior, pois estão lidando com saúde e
doença, vida e morte de outro ser humano.
Para
finalizar, dentro ainda do contexto de não tirar conclusões precipitadas, mais
um exemplo, dessa vez sobre dor. Doutor, estou com uma dor aqui... Não, o
senhor não está com dor aí. Como assim? Se estou falando que estou é porque
estou.
Hoje se sabe que a dor é uma doença, que algo não está bem e o cérebro
manda esse alerta por inúmeras razões. No envelhecimento o corpo sinaliza o desgaste natural, se o paciente diz que está doendo é porque sente dor, dormência, coceira, desconforto, enfim. Não dar ouvidos é, no
mínimo, cruel.
Da mesma
maneira, quando o médico pergunta se a paciente ainda tem vida sexual é porque
chegou à conclusão de que não tem mais. Será?
A libido desconhece números.
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